ALUT 419


Quem és tu? 

Tu és 1 pessoa entre 8 biliões de pessoas e pertences a uma espécie entre outras 3 milhões de espécies já identificadas, estimando-se que existam 30 milhões a habitar no planeta Terra que, juntamente com outros 7 planetas, ou 8, se insistirmos em Plutão, gira à volta de uma estrelinha chamada Sol, que é uma estrela entre 100 biliões de estrelas que existem na Via Láctea, que é uma entre 200 biliões de galáxias que compõem o universo, que existe há 15 biliões de anos e que, segundo a ciência quântica, é apenas 1 universo possível entre vários. 

Depois deste km vertical de pensamento e de fôlego, que recito sempre que posso, pergunto novamente: quem és tu? Quem sou eu? Os números podem variar consoante as fontes, mas tudo aponta para uma resposta de grande rigor científico semelhante à que Mario Cortella deu numa das suas aulas e que o youtube eternizou: 

"VOCÊ É O VICE-TRECO DO SUB-TROÇO." 

Nós e todos os nossos problemas são uma piada cósmica. Levo muito a sério esta reflexão, concluindo que nada deve ser levado demasiado a sério. A sério. Nesta escala de raciocínio, o que são 300 kms e 72 horas de tempo limite para os percorrer no ALUT? Nada. Paladinos da auto-seriedade, não se irritem já. Este raciocínio, tal como a prova que está na sua origem, ainda tem algumas surpresas na manga.

Como devem imaginar, esta relativização dos 300 kms estava longe de ser o meu pensamento à partida para o ALUT. Tão longe quanto a meta deste monstro algarvio, que fazia as 29h30 do MIUT e os 145 kms dos Caminhos do Tejo parecerem raia miúda. Em bom português, estava todo borradinho. O medo justificava-se: o que aconteceria aos pés para lá dos 150 kms? Ao dormir pela primeira vez numa prova, seria capaz de me levantar e prosseguir? Como seria enfrentar uma inédita terceira noite? O ALUT representava um mergulho em águas desconhecidas. Às 16h30 do dia 25 de Novembro, ao lado do eremita dos trilhos Teodoro Trindade, atirei-me de cabeça naquele que seria o maior desafio mental e físico da minha carreira desportiva. 


Break from the ordinary, do what's necessary 
Pray, pray for death, pray for ecstasy
Skin off the human shell, so broken and frail
Lock the gates behind the hermit saints
Oh, hear them call, from hell on earth
Oh, hear them call
Oh hear them call from nature's dome
From far beyond, oh hear them call
Oh hear them, oh hear them

O ALUT é uma prova com algumas características pouco habituais, que vão além dos seus 300 kms. Para começar, a distância entre cada abastecimento é maior do que a maioria dos treinos de Domingo e de muitas provas. Com excepção do percurso entre Marmelete e Monchique, todas as etapas têm entre 25 e 39 kms. Por este motivo, os abastecimentos do ALUT não são abastecimentos. Todos, sem excepção, são bases de vida. Estes dois aspectos mudam muita coisa em termos de planeamento para uma prova, mas no fim da linha, o importante é prever com o máximo de margem tudo o que vamos ter à disposição em cada paragem. Se acham que têm muita coisa para as corridas, desenganem-se. Para o ALUT, é sempre pouco. Em qualquer uma das 9 bases de vida, precisar de roupa, calçado, comida ou outros cuidados e não ter, pode transformar-se numa bola de neve com efeitos devastadores até à próxima paragem. Aumenta também a importância das equipas de apoio, mas até à véspera da prova, preparei tudo como se estivesse totalmente por minha conta. O meu planeamento revelaria algumas lacunas ao longo da prova mas, para minha surpresa e felicidade, outros tinham feito planos que se revelariam essenciais para o sucesso de mais uma insanidade.  

Outra característica curiosa do ALUT são os seus dorsais. Nesta prova, cada atleta recebe um número que será seu para sempre. O 419 só voltará a percorrer os caminhos algarvianos se eu voltar a envergá-lo. 4, de quarta edição, 19, o meu número de chegada entre os novos participantes deste ano. Esta forma de organizar os inscritos permite à organização fazer uma análise estatística curiosa desde a primeira edição. É como se todas as edições do ALUT fossem uma só.


Quem costuma ler as minhas crónicas, sabe que não dedico muito tempo a descrever a prova. Prefiro perder-me nas reflexões e auto-descoberta que ela me proporciona. Esta tem muito para contar, no entanto. Mesmo assim, à semelhança de outras provas no passado, as pernas fariam a sua parte, mas seria na minha cabeça que a verdadeira corrida teria lugar.  

As primeiras 3 etapas da prova não têm muito que contar em nenhum aspecto. Foram etapas muito rolantes com alguma subida à serra, que nos levaram até Barão de São João, Marmelete e Monchique. Parece coisa pouca, mas estamos a falar de quase 90 kms! O padrão da prova estava encontrado: nas bases de vida, o estômago e a moral enchiam-se. Eu e o Teodoro saímos sempre motivados e muito faladores. Planeávamos adiar a primeira paragem para dormir para lá de Messines e celebrávamos como estávamos bem em relação ao plano. Depois, com o passar dos kms, o balão motivacional começava a perder ar. Mais silenciosos, ansiávamos pela próxima base de vida que insistia em não aparecer. Até Monchique estranhámos o número de kms registados abaixo dos oficiais e prevíamos que algures eles seriam compensados. Seria logo a seguir. As bolhas davam o primeiro ar da sua (des)graça no meu pé direito. 

A etapa de Monchique a Silves seria o primeiro golpe da prova na nossa motivação. Quase a chegar à histórica cidade algarvia, onde o Teodoro queria fotografar-nos ao lado de D. Sancho, fomos presenteados com uma montanha russa de sobe e desce e kms adicionais. Já com a cidade à vista, não havia maneira de ir na sua direção. E assim se agravaram as bolhas do pé direito e o cansaço, no corpo todo. Ainda nem estávamos a meio. Viria a saber dias mais tarde que o Teodoro se tinha debatido com falta de água neste troço (e eu com tanta no camelback...). Já vos disse que no ALUT os problemas são como bolas de neve, não disse? Mesmo quando começam pequenos, transformam-se em avalanches se não forem resolvidos de imediato. Encontramos o Luis Afonso a passear por Silves e vamos com ele até à base de vida onde nos esperava a (Santa) Guida, esposa do Teodoro.

Saídos de Silves, o caminho para Messines seria penoso. Apesar do motivante apoio da Sandra e do Rui, que encontrámos pelo caminho, o estômago do Teodoro começava a recusar comida, os seus olhos recusavam abrir, tal era o sono (atletas a seguirem caminho de olhos fechados é uma realidade e o Teodoro demonstrou-o) e o meu pé direito já recusava correr. Chegaríamos a Messines de noite, prontos para dormir pela primeira vez na prova. Os planos e o optimismo tinham desaparecido com o sol e o cenário estava negro como a segunda noite. Com o pé naquele estado, desistir parecia inevitável. Como continuar, incapaz de correr, faltando metade da prova, supostamente a metade mais difícil? Quando a prova parou por momentos nas minhas pernas, começou na minha cabeça e tudo se decidiria nas horas seguintes. As palavras do Teodoro foram sensatas como sempre: "vamos dormir 1 hora e depois avaliamos". 

No MIUT falei da importância do momento em que me sentei num tronco à beira do trilho para desistir e como pensar naqueles que tinha deixado em casa mudou tudo num instante. Como percebi que não podia decepcioná-los e que não poderia desistir só porque estava a ser difícil. No ALUT sentei-me em vários troncos imaginários. Comecei por ver aqueles R4F todos à minha volta, longe de suas casas e do seu conforto, a darem tudo para me ajudar. Sandra, Rui, Luis Afonso, todos numa azáfama a prepararem-me roupa, saco-cama, cobertores, mochila, comida, bebidas, etc. Pensei então que havia mais R4Fs a caminho e que nos esperariam nas etapas finais. Pensei que tudo seria em vão e que nem metade da prova tinha passado. Pensei que tinha influenciado o Teodoro a fazer a prova de uma maneira que talvez não fosse a dele e que o deixaria sozinho, a meio. Deitado no saco-cama, tapado por cobertores, a chorar que nem uma madalena, visualizei-me na meta com eles e percebi que tinha que continuar, custasse o que custasse. 

A partir daqui começa um filme diferente. Uma espécie de sequela que todos querem ver, mas que suspeitam que vai ser pior que o filme anterior. Acordo convicto de que vou preparar-me e arrancar. Os R4F trazem até mim a equipa médica para tratar do meu pé direito. Ligado o pé, levanto-me e a sensação é incrivelmente boa. A partir de Messines passei a procurar a médica milagreira como quem procura por canja quente.  Consigo andar direito e direito vou à notícia que já me esperava sentado numas cadeiras mais à frente. "O Teodoro vai desistir". Vómitos, azia, má disposição, tudo tinha piorado para ele e o seu estado não deixava dúvidas sobre qual o desfecho. Mas o Teodoro não se verga com facilidade e a médica milagreira tinha um comprimidinho daqueles que levantam qualquer um. Como aqueles azulinhos, mas para o corpo inteiro. Perante este cenário, o meu primeiríssimo pensamento, confesso, foi "já posso desistir". Mas durou umas meras décimas de segundo. Logo de seguida apercebi-me que a situação era a exactamente oposta: estando ambos fora de corrida, a viagem de tantos R4F teria sido completamente em vão. Só havia uma hipótese: se o Teodoro tinha que desistir, eu tinha que continuar. 

Saio que nem um louco desvairado da base de vida, literalmente a cuspir fogo das ventas. O peso da responsabilidade deu-me tamanha energia que no exacto momento em que saio de Messines, todas as dúvidas desaparecem. A fé voltaria a ser testada antes do fim, mas naquele momento eu tive a certeza que acabaria o ALUT. O Teodoro aguardou uns instantes para o comprimidinho fazer efeito e ainda se lançou a mais uma etapa, ou não fosse ele o duro dos montes que ele é. Sem melhorias, daria os seus esforços por concluídos em Benafim, a base de vida seguinte. Ou muito me engano, ou ele lá voltará para ajustar contas, embora ache que o saldo continua amplamente a seu favor. Mas é a teimosia que o leva longe e será a teimosia a levá-lo lá de novo, pressinto. 

Daqui para a frente, a prova resume-se com alguma facilidade. Segui para Benafim a todo o vapor, só parando a meio para a médica milagreira tratar do pé esquerdo, que também já tinha um furo. Só faltam 4 etapas. Segui no mesmo passo para Barranco do Velho, marcando a entrada na serra do Caldeirão. A trote nas descidas e em plano. A andar à bastonada nas subidas. Dormi mais 1 hora no Barranco antes de seguir para o Cachopo. Faltam 3. Mesma toada. Pelo caminho, aparecem novos R4F. Xico dos collants, a sua namorada Cristina, a Guida e o Quim Samarras juntam-se à festa. No Cachopo, só faltou o Xico ler-me uma historinha para adormecer, seguida de conchinha. 5 estrelas. Durmo mais 1 hora. Volto a recorrer aos serviços da médica milagreira, trocando ligaduras dos dois pés. Faltam 2. 

Sigo para Furnazinhas. Apesar de manter o ritmo, alternando trote e bastonada, a terceira noite chega. O caminho está escuro, não se vê nada e o estradão monótono parece não ter fim. Ligo para casa para me manter acordado. Ponho música alta no telemóvel. Mas nada dura para sempre, nem o tédio. Quase a chegar a Furnazinhas, o maior inimigo dos pés: travessias de água. Quase 260 kms e era agora, no finalzinho, com os pés por arames, que nos faziam atravessar ribeiros. Desmotivo, mas sabia que reencontraria a médica milagreira no abastecimento. A passo, faço aqueles 4 kms até Furnazinhas onde me espera o Luis Afonso, pronto para começar a etapa comigo. Um frio de rachar. Aqui, não durmo. Só falta 1. A última. Siga para Alcoutim, finalmente. Mas não sem antes pôr os pés de molho em água quente e trocar as ligaduras. Arranco e aparecem as primeiras dores musculares (até a mim me custa a crer que tal só tenha acontecido ao fim de 260 kms). Joelho esquerdo prende. Pés doem só de tocar no chão. Está difícil, mas segue o trote quando é possível. Até que acontece o que mais receava. 1 ou 2 da manhã. Temperaturas próximas de 0. Novo ribeiro para atravessar com água até ao joelho. Todas as boas sensações que fui tendo até aquele momento, foram na corrente daquele riacho. Não mais voltei a trotar e os últimos 35 kms pareceram durar uma eternidade enquanto penosamente dava cada passo. Luis Afonso deu lugar à Sandra. Mais à frente, enquanto dava a volta ao bilhar grande para chegar a Alcoutim, voltou a juntar-se a pandilha R4F, agora com todos os presentes. Já à beira da meta, esperava-me o Teodoro, que abracei emocionado. Já não faltava nada. O ALUT terminava. A mente celebrou. O corpo colapsou. 

E agora? O que se faz depois disto? Agora, é tempo de fazer uma pausa para curar feridas provocadas por estas loucuras, mas também uma pausa para pensar noutros objectivos, menos individuais e mais colectivos. Um novo polo saloio R4F? Caminhadas ao sábado no Cabeço? Desafios insanos para os laranjas? O tempo dirá. 

Mas afinal, quem sou eu? Posso não ser nada à escala do universo mas da minha perspectiva eu sou o seu  centro. Do ponto de vista da minha consciência, tudo existe à minha volta. Tal como existe à vossa volta. À volta de cada um de nós. Há lógica neste pensamento e não apenas espiritualidade e filosofia. O infinito continua para dentro. Se há uma imensidão exterior que nem cabe no nosso entendimento, também é verdade que há quase um infinito no nosso interior. Afinal de contas, mais coisa, menos coisa, somos feitos de cerca de 40 triliões de células ou 7 octiliões de átomos. E se isto não vos faz dizer "Cralhes", não sei o que fará. Bom, talvez fazer uma prova de 300 kms. 

Semper cralhes!






 

Comentários

  1. Só tu serias capaz de analisar desta forma o que significa este "passeio" de 3 dias pelos montes (adoro). A determinação arrastou-nos ao longo caminho quase tanto como a emoção do companheirismo e amizade de quem lá esteve para nos apoiar, assim como outros também o fizeram à distância.

    Tu (419) e todos eles (5xx) são campeões, estou-vos eternamente grato. Adorei a tua companhia, não me importava de voltar a te-la, nesta ou noutra prova qualquer. Obrigado.

    Agora, trata de afinar a máquina para depois fazermos planos.

    Abraço.

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  2. Belo relato companheiro!

    Acabaste por fazer uma pega ao fu€#&@ing ALUT pelos cornos.

    Orgulho de ti.

    E venham de lá essas caminhadas no Cabeço.

    Runabraços

    Rui

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  3. Muitos parabéns. Belo relato da prova.

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  4. Pedro Ribeirolas, os teus textos são como as tuas prestações: nunca desiludem. Aos 130 km testemunhei o momento de apreensão, relativamente ao pé, e era palpável a tua perspectiva de derrota. Nessa fase o Teodoro Trindade transparecia muito sono e má disposição. E, aí, também começou o nosso sofrimento por empatia pois nada do que dizíamos obtinha as normais reacções de riso e de sarcasmo. Chegámos a Messines e vi a azáfama e profissionalismo da Margarida, em termos de apoio. E percebi o quanto era essencial. Acompanhei-te nos últimos 24 km, de noite cerrada, com um frio de morte, cheia de pena de mim mesma (?!?!) no início. Fui tentando perceber qual a melhor forma de apoiar, falando esporadicamente e de forma positiva. Já tinhas dito que era impossível trotar ou andar depressa, pelo que sabia que as horas se arrastariam. Apercebi-me dos inúmeros suspiros e gemidos, decorrentes do cansaço e do sono, e da impossibilidade de os minimizar. Mas apercebi-me, também, da clarividência que mantiveste nas respostas e nos raciocínios, ao contrário do que tinha visto noutros atletas. E mantiveste o humor mordaz e sarcástico. Comentei, então, que que o maior desafio seria a decisão de sair do abastecimento, para uma nova longa, e solitária etapa, em vez de optar pelo calor e descanso do abastecimento, pondo fim à prova. Mas esclareceste que a cada saída do abastecimento, o corpo e o ânimo renasciam. Assim, o verdadeiro desafio era o de chegar ao abastecimento, cansado, esfomeado, com dores e tomar a decisão de preparar tudo, para seguir.
    Já sabemos que as ultras proporcionam momentos de auto-conhecimento, pelos desafios criados ao corpo, à vontade e à determinação mas, durante aqueles 3 dias, parecia-me assistir ao "The Night of The Living Dead".
    Na meta controlei-me porque todos se controlaram (já tinha chorado baba e ranho quando o Rui Faria terminou os 180km do EstrelAçor). E percebi, mais uma vez, a importância destes relatos e destas viagens interiores: apercebemo-nos do cansaço e do sofrimento, porque estão espelhados nas vossas caras. Mas não transparecem as dúvidas, os momentos fulcrais, as emoções, tão pessoais, ocorridas debaixo do edredão. Por isso, muito obrigada pelo relato desta experiência humana, que toca ainda mais do que experiência do super-atleta. É de homem, cralhes!

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  5. Muito bom grande Pedro! Enorme prova, excelente crónica.
    Gostei particularmente da descrição do ênfase na responsabilidade que sentiste perante os outros que te acompanham de perto ou de longe. É algo que eu também sinto em todas as provas e revi-me muito no teu texto graças forma fantástica como a descreveste. Muitos parabéns, cralhes!

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