Serra Amarela Skymarathon



Autor: Gonçalo Fontes de Melo
(Junho/2018)



Ao visitar a exposição do Sagmeister, no MAAT, fiquei um pedaço de tempo a olhar para uma obra, feita de letras em néon. Às tantas, aparecia escrito “Seek Discomfort”. Sentei-me a pensar no caso, pois no fim de semana seguinte ia embarcar na aventura de percorrer 48 km na Serra Amarela. Desde o Grande Trail da Serra de Arga que não fazia uma Ultramaratona e tinha decidido fazer o Circuito Buff, de provas de 20 e poucos km, no primeiro semestre, a um ritmo de uma prova por mês, para me manter focado e minimamente em forma nos trilhos. São provas intensas e rápidas, e têm a vantagem de, quando já estamos de gatas, as provas acabam. É por demais evidente, como já tive oportunidade de perceber violentamente por duas vezes, que treinos pequenos e intensos não nos preparam para Ultras, e muito menos para provas que duram 9 ou 10 horas, às vezes mais. Tinha programado fazer uma Ultra em Andorra em julho, mas ia coincidir com um evento de um fantástico grupo de corrida, a que eu me orgulho de pertencer e cancelei a ida. De modo que, em alternativa, fui procurar o desconforto (lá está) e decidi abraçar o desafio proposto pelo Carlos Sá, na 1ª Edição da Serra Amarela Skymarathon, o que resultou na antecipação de um mês de uma prova desta dimensão, e não estava devidamente preparado para arfar na dita cuja. Ainda para mais, era uma Skymarathon, seja lá o que isso for. Procurar o desconforto, pronto. Mas precisava de ir para as montanhas, pois o meu mundo é muito agitado e barulhento e é ali (não é um cliché) que vou procurar a paz e tranquilidade que me é indispensável. Não esperava era encontrar um dos mais fascinantes trails que já fiz.

Serra Amarela é a nona maior elevação de Portugal Continental, com 1359 metros de altitude (Louriça). Situa-se no Minho, entre a serra do Gerês e a serra do Soajo, fazendo parte do sistema montanhoso da Peneda-Gerês. Divide-se entre os concelhos de Ponte da Barca e Terras de Bouro (Wikipedia). A prova, com início e fim na Aldeia de Entre Ambos os Rios, com cerca de 48 km e de 2800 m D+, fazia parte da Taça de Portugal SKY da Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal. O Sky Running, uma vertente da Corrida em Montanha, levava os seus participantes a percorrer trilhos inóspitos, aldeias preservadas, castelos, rios, vegetação luxuriante e verdejante, com vistas incríveis sobre os espelhos de água da Albufeira de Vilarinho das Furnas e da Albufeira de Tamente, neste maciço montanhoso do único Parque Nacional de Portugal – o Parque Nacional Peneda-Gerês. Imperdível, portanto.

Depois de uma semana agitada, lá me fiz à estrada e fui ter com o grande amigo e companheiro destas andanças Jorge Esteves e a sua mulher, Elsa Mota, e a Carla Rebelo, que tinham viajado juntos. Jantámos lindamente perto da aldeia onde tinham o alojamento. No dia seguinte, encontramo-nos na partida, poucos minutos antes das sete da manhã, debaixo de chuva. Foi a inspeção de material mais rápida que já me fizeram: “Telemóvel, manta, o impermeável? - Já está vestido, siga!”. Nem falei. Ainda bem que não ouvimos o Carlos Sá a alertar para as más condições climatéricas montanhas no briefing e que, se alguém tivesse reservas, que trocasse para a prova dos 33 km. Siga para a montanha. Adoro aquelas condições agrestes, e aqui começou uma jornada que se veio a revelar estranha e ao mesmo tempo fascinante, pelas várias alterações do estado de espírito. Eu diria mais, mudanças de personagens. O Gonçalo que partiu sofreu algumas mutações ao longo deste formidável trajeto. Este começou rolante e bastante molhado, na companhia do Jorge e da Elsa e, logo aos 4 km, uma fila de atletas parados e o barulho da água do rio prometia a primeira aventura. Ao aproximarmo-nos do leito do rio, percebemos que a altura da água tinha subido muito e estava com muita força. Os atletas formavam um cordão humano, de modo a que ninguém escorregasse nas pedras enormes e fosse corrente abaixo, o que se revelou fundamental para alguns atletas mais franzinos. Vimos a Carla mesmo no meio, com cara apreensiva, mas decidida. Do outro lado, vimos chegar o Carlos Sá, com ar visivelmente preocupado.

Foi aqui que ocorreu a primeira transformação: passar um rio a vau, às 7 e meia da manhã, com água gelada até ao umbigo, converteu-me num índio chamado Wet Balls. A partir desse ponto, essa personagem correu e andou vigorosamente, a murmurar cânticos ininteligíveis até ao primeiro abastecimento, o da Ermida, onde mal parou. Estava encharcado e ainda não tinha aquecido, e Wet Balls arrancou com vigor para a monumental subida do Alto da Louriça, atravessando single tracks, atravessando matos e lameiros, com os tojais e urzes que dão nome à Serra, que lhe davam tons amarelos e roxos que encantavam Wet Balls e os restantes atletas. Sempre que podíamos trotávamos, sempre de impermeável vestido. Antes da Louriça, apanhámos as primeiras descidas e Wet Balls sorriu de satisfação e pensou que, agora sim, ia descer como tanto gostava. Como era uma desgraça a subir, queria aproveitar as decidas para ganhar algum tempo. Eis senão quando, graças a uns ténis novos que não conhecia bem, e que se vieram a revelar um terrível handicap, deu por ele a cair estrondosamente de costas ao escorregar nas primeiras rochas que apanhou. Doeu. Apanhou um cagaço e, a partir daí, a sua prova foi condicionada pelo péssimo desempenho dos ténis, que determinaram uma velocidade de descida muito reduzida.

Foi aí que voltei a mim, liguei todos os sentidos, e foi já como Gonçalo que fui por ali fora, a gozar todos os sons e cheiros da Serra, até ao abastecimento do Alto da Louriça. Neste ponto as provas dos 33 km e dos 48 km dividiam-se e ainda esperei um pouco pelo Jorge e pela Elsa mas estava a ficar enregelado e arranquei. Pela primeira vez numa Ultra não me veio aquele pensamento sinistro “se eu tivesse juízo virava já aqui”. Queria dar a volta ao bilhar grande, até à aldeia de Lindoso. E que boa decisão! Depois de 2,5 km de estradão, comecei a descer, passando por bosques encantados e single tracks lindíssimos, avistando, a certa altura, a Barragem do Lindoso e a Barragem de Vilarinho das Furnas, ao longe. Nos vales, estava sempre à espera de, a qualquer momento aparecerem duendes, elfos ou uma Bela Adormecida. Garanto-vos que não fumei nada. É que é mesmo bonito. Cheguei ao abastecimento do Lindoso, onde as simpáticas voluntárias me ofereceram canja e, depois de abastecer de água, arranquei decidido para a subida de retorno ao Alto do Louriçal, 8 km a penas por ali acima.

Mais uma vez, ocorreu um episódio que me persegue nas Ultras que faço no Norte e, ao sair da aldeia, vejo um cabr#ao de um cavalo a olhar para mim com ar de gozo. Depois de um sprint, eis senão quando outra metamorfose ocorreu: o Gonçalo transformou-se no Rashed Balls, um chefe índio mais rasca. O Gonçalo (uma besta) tinha partido para uma Ultra de slips e, com a muita água no corpo, mistura de chuva, rios e suor, começou a ficar assado que nem cachaço de porco. Deste modo, Rashed Balls esteve quase duas horas a subir, sozinho, contemplando a magnífica paisagem, estugando o passo com a ajuda de bastões, e praguejando com todos os seus dentes. Assim chegou ao estradão que tinha já feito anteriormente, e caminhou de perna aberta até à tenda do abastecimento. Enquanto reconfortava o estômago e enchia os recipientes de água, cai uma chuvada brutal. Encolhe os ombros, veste o seu manto e arranca para uma parede que ia dar às antenas (muito gostam estes gajos de antenas e eólicas) e, a praguejar como nunca, escalou até ao topo, onde o vento, chuva e nevoeiro se faziam sentir. A partir daí, numa viagem ao seu ser interior, os seus conflitos internos foram-se dissipando, por força da beleza e do silêncio dos lameiros e descidas em pedra que percorreu. Deve ser isto o mindfulness. Viu vacas barrosãs a ruminar e bostas de todos os tamanhos e feitios. Até começou a perceber que, de facto, aquilo tinha o seu quê de SkyMarathon. Irreal.  Só não percebia é porque que é que envergava slips, que lhe provocavam um ardor cada vez maior nas partes baixas, e porque é que tinha uns ténis cor de laranja que escorregavam tanto nas pedras. Quando forçava o andamento para apanhar uns atletas que vislumbrou ao fundo, eis que se dá a segunda queda, voltando, com o baque, o Gonçalo a assumir a prova. Assim, respirei fundo, lambi as feridas e continuei a descer, apanhando o Pedro Amorim, médico do Carlos Sá, que percorria tranquilamente os lameiros do planalto com os seus bastões, numa corrida experiente e elegante, mas mais lenta. Fomos na cavaqueira durante uns km, e ele perguntando-me: “Esses ténis escorregam um bocado, não é?”. Vendeu-me uns Berg. Seguimos juntos e percebemos que o abastecimento seguinte, o de Germil, soubemos depois, pois o meu rico Suunto já tinha encerrado para obras, tinha sido realocado por causa das más condições atmosféricas, e estava 2 km mais à frente.

Antes disso, mais outra experiência inédita: um atleta chega atrás de mim e eu dou-lhe passagem. Ele diz-me: “Não posso, que sou o vassoura!”. Aí senti uma chicotada violenta no rabo e, apesar das dores nas virilhas, acelerei o passo e rapidamente me distanciei do simpático médico e daquela figura sinistra (coitado) que me parecia carregar uma foice. Já fui barrado, mas “vassourado” é que nunca! Rapidamente cheguei a Germil, onde ingeri mais uma canja e a famosa sandes de presunto que sempre levo, e fui-me embora, dizendo aquela famosa frase  “Vamos lá acabar esta m#rda!” Segui em trio com um rapaz e uma rapariga mais novinhos, mas todos rotos, para a última parte do percurso, trotando sempre que podíamos. Nem demos pelo último abastecimento, o de Paradela, pois já só pensávamos na meta. Apesar de ir concentradíssimo, dou mais um espalho absurdo, que teve o ridículo de acabar em espargata. As virilhas adoraram o gesto. Lá continuamos os três pelos single tracks em direção ao rio Tamente, que tivemos de cruzar mais três vezes, com ajuda de cordas. Na última, e com a ajuda de dois rapazes da organização, um deles com ar de ser filho do Carlos Sá (era a cara chapada), e duas cordas suspensas, o uivo que eu dei quando a água chegou ao umbigo ainda deve ecoar nas margens daquele rio! Graças a isso, os últimos km foram feitos a um ritmo mais rápido, a trote, com as pernas arqueadas tipo cavaleiro e cheio de dores, disfrutando do maravilhoso trilho, mas doido para acabar, até à aldeia de Entre Ambos-os-Rios, onde ficava a chegada. Apertei a mão ao Carlos Sá e dei-lhe os parabéns pela magnífica prova que organizou, ao mesmo tempo que me punham uma medalha de finisher (gosto tanto) ao pescoço. Tirei o chip e fui deglutir, devagarinho, uma sopa e uma bifana. Por último, troquei de roupa e bebi duas jolas de penalty, em sentida homenagem ao Jorge e à Elsa, que completaram os 33 km e à brava Carla, que terminou antes de mim. Ficam 10 horas e meia de uma prova lindíssima, com condições agrestes, como eu gosto, com a marca da organização do Sá, e que pode ser feita mais rapidamente se estivermos em forma, não é como a brutal Arga. Organização irrepreensível, percurso bem marcado e com abastecimentos bons.

Ainda não percebi bem é porque é que lhe chamam Skymarathon. Mas lá que tem pinta, tem.

Que bela passeata! Terias gostado muito, Teodoro!
-- Gonçalo Fontes de Melo/2018



Comentários

  1. Grande relato, uma delicia.

    Tenho a certeza que teria adorado, tanto como tu.

    Muito obrigado pela partilha Mr. Balls.

    Um abraço

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  2. Que relato giro, Gonçalo!
    Só podes sentir- te orgulhoso!
    Parabéns!

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  3. Muito bom! Parabéns pela prova e pelo relato!

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  4. Parabéns Gonçalo, um prova inesquecível a repetir certamente.
    Obrigado pelo inspirado relato.
    Abraço

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  5. Valente!!
    És um gajo cheio de garra e genuino.

    E fazes aqui um relato fantástico e que me deixa curioso.
    Venham as próximas.
    Parabéns e abraço

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  6. Espetacular relato Gonçalo!!
    Parabéns!!

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