4ª Meia Maratona de Bissau
A minha estreia em provas de atletismo africanas - suponho que a única que se realiza com regularidade na Guiné-Bissau - não poderia ter sido melhor. Não pelo tempo que fiz, a rondar umas modestas duas horas, mas pela oportunidade que ela me proporcionou de viver um ambiente genuinamente diferente e de experimentar novas sensações. Será difícil que corra melhor no próximo ano, se ainda aqui estiver.
Já vinha com ideias de correr a Meia Maratona de Bissau desde Lisboa, depois de ter visto notícia na Internet de que já se tinham realizado três edições da prova, sempre no fim de Outubro. Ao chegar a Bissau a informação sobre a prova não abundava, mas porque o meio é pequeno tive a felicidade de conhecer casualmente num supermercado Renato Moura, o Presidente da federação de Atletismo da Guiné-Bissau (FAGB), que é a entidade organizadora. E além de confirmar a data recebi instruções sobre como me inscrever.
Ao fazer a minha inscrição na prova percebi que ela seria diferente. Dirigi-me à empresa patrocinadora do evento - a MTN, uma empresa privada sul africana que opera uma das três redes de telemóveis do país - onde me pediram uma fotocópia de um documento de identificação e a indicação do meu número de telefone. Não paguei nada pela inscrição, mas também não recebi nada em troca. Pelo menos não naquele momento. Disseram-me apenas que as informações sobre a mesma seriam dadas pela rádio.
Assim foi. Na semana que antecedeu a prova comprei um rádio de pilhas no Mercado do Bandim e fiquei a saber pela publicidade da MTN, em crioulo, de onde partia a prova e a que horas tinha que lá estar (07h00). Fiquei também a saber que havia transporte coletivo a partir de vários pontos de Bissau para o local da partida às 6h30, mas optei por pedir ao Rivelino, meu fiel companheiro nas voltas que tenho que dar por Bissau, para fazer o favor de vir comigo para trazer o carro até à meta.
No local da partida, a pequena localidade de Safim a 16 km de Bissau, percebi a lógica da inscrição. Usaram os documentos de identificação para construir uma lista de participantes, que eram chamados um a um para lhes ser atribuído um número de inscrição e entregue a correspondente camisola. Os números de telefone serviam apenas para distinguir os nomes repetidos, o que é frequente aqui na Guiné. Tive que trocar a minha camisola dos Run 4 Fun pela camisola oficial da prova, e esperar que você dado o tiro de partida. Estava previsto para as 8h00, mas o atraso no processo de atribuição dos dorsais e a chegada tardia da comunicação social fez com a largada se desse com quase meia hora de atraso. Felizmente São Pedro ajudou, e manteve o céu encoberto durante uma boa parte da prova. Só não foi possível evitar o calor, a rondar os trinta graus, e sobretudo a humidade, muito acima dos 80%. O céu encoberto era, aliás, o prenúncio de uma chuva leve que caiu pouco depois do fim da prova, que decorreu assim durante o correspondente período de condensação.
A largada só não foi mais caótica porque o número de participantes, comparativamente com o que agora é usual em Portugal, era relativamente pequeno. Segundo a Organização eram 401, quase todos jovens rapazes na casa dos vinte, eventualmente trinta anos. Além de ser um dos únicos dois brancos (o outro era um missionário americano em São Domingos), era certamente o mais velho em prova, e apenas consegui identificar três raparigas. O oposto, portanto, do que se passa entre nós. Além de razões de ordem social, ou étnicas, para a fraca representação de outros extractos de corredores, a principal explicação é a de que a lógica da prova é predominantemente competitiva (ainda que o não seja em termos internacionais, já que o vencedor fez o modesto tempo de 1h24m).
A maior parte dos participantes estava verdadeiramente iludida de que poderia ganhar um dos prémios monetários oferecidos pelo patrocinador ( o prémio do vencedor foi de um milhão de Francos CFA, sensivelmente EUR 1.500, e até ao quarto lugar havia prémios de metade do valor do prémio antecedente). A ponto de eu ter presenciado a desistência de corredores que se deram conta de que já não poderiam ganhar. Eu aliás fui citado numa rádio local como um exemplo das poucas pessoas que tinha vindo apenas correr por prazer.
Dada a natureza da prova e impetuosidade dos participantes, escusado será dizer que fui imediatamente remetido para a cauda do pelotão, um pouco à frente do "carro vassoura". Mas fui paulatinamente ultrapassando vários corredores que rebentaram ao fim de quatro ou cinco quilómetros, o que no entanto não impediu que uma parte da prova tivesse sido feita na companhia do tráfego rodoviário normal. A estrada de Safim para Bissau não estava propriamente cortada ao trânsito, e só depois do Aeroporto, já dentro da cidade, é que tivemos direito a uma faixa exclusiva para nós. Nessa fase fui na companhia de dois ou três corredores mais conscientes das suas limitações, num ritmo relativamente moderado. O percurso era muito exigente, com pelo menos duas rampas muito respeitáveis e vários outros desníveis menores.
Ao fim de quinze ou dezasseis quilómetros embrenhamos-nos pelas ruas do centro da cidade. A certa altura perdi-me mesmo, porque a minha companhia do momento resolveu desistir (a prova já estava ganha, dizia ele) e não havia ninguém no local para dar indicações. Devo ter corrido menos umas centenas de metros do que o devido, até encontrar outros corredores e seguir no caminho certo, e na desorientação do momento o meu Garmin deixou de funcionar por largos minutos. Pelo registo que tenho, de 1h50m para 19k e 500m, terei feito um tempo em cima das duas horas. Mas isso verdadeiramente não importa quando comparado com a sensação única de entrar no Estádio Lino Correia com as bancadas repletas de um público entusiasta a saudar os corredores.
O entusiasmo do público foi uma constante ao longo de todo o percurso, particularmente nos cerca de 8 ou 9 km da Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria, que liga o Aeroporto ao Centro de Bissau. O Bairro da Cooperação Portuguesa, onde moro, fica a poucos metros dessa avenida, e foi com simpatia e espanto que fui saudado por alguns dos funcionários do bairro que que foram para a Avenida ver passar a corrida. Pela novidade, eu fui alvo de um entusiasmo especial do público ao longo de toda a prova, sendo invariavelmente saudado ao som de cânticos de "Branco! Branco! Branco!", a que eu normalmente respondi com acenos de agradecimento. Não pude deixar de soltar uma gargalhada quando a dada altura ouvi alguém comentar que não percebia porque o branco queria ganhar mais um milhão!
Também fui objeto de alguma atenção à chegada à meta. Além de branco, e com cabelos brancos, fui identificado pelo jornalista da Rádio Jovem como o Assessor Científico da Faculdade de Direito de Bissau. O que faz ele aqui, devem ter pensado? Tive direito a uma entrevista e tudo, acompanhada pelos jornalistas das mais politizadas Rádio Bombolom e Rádio Pdjiguiti. A rádio é o mais poderoso meio de comunicação social na Guiné-Bissau, e também o mais livre, já que uma boa parte da população não sabe ler e não tem abastecimento regular de energia eléctrica, o que faz dos jornais e da televisão meios de comunicação absolutamente marginais. Prova disso é que já fui entretanto saudado por um funcionário do bairro que não estava ao serviço de manhã pela "excelente entrevista" que dei à rádio :-). Toda a gente ouve rádio - a corrida foi transmitida em direto - e não há nada que se passe em Bissau que não se saiba através dela.
Não houve distribuição de medalhas nem de outros prémios para além dos monetários a que tiveram direito os quatro primeiros classificados. Mas houve confraternização entre os corredores e muita animação, incluindo a aparição de alguns jovens nativos balantas "despidos" a rigor para as suas cerimónias de iniciação. Se ainda cá estiver, para o ano haverá mais. Pode ser que nessa altura já me tenha habituado a correr com este calor e com esta humidade, e quem sabe se não ganho o milhão!
Claudio Monteiro
Cláudio,
ResponderEliminarainda agora chegaste é já és famoso. Assim é que é.
Muito interessante o teu relato. Obrigado por partilhares.
Abraço,
AC
Cláudio,
ResponderEliminarObrigado pelo relato sobre uma realidade tão diferente da nossa, mas certamente muito interessante.
Estás a inovar, e provavelmente na próxima já terás alguns seguidores no teu escalão.
Runabraço
Prova mais do que ganha, grande espírito!
ResponderEliminarCláudio,
ResponderEliminarQue grande aventura! Vais ficar na história do atletismo de Bissau!
Um abraço