Alex Supertramp na Freita


Dizem que a vida não é só corrida. Sendo impossível discordar, acrescento que a própria corrida não é só corrida. Eu mesmo, não sou só eu mesmo e as provas têm servido para expressar isto mesmo, através de narrativas e personas efémeras, fora do eu habitual, sempre acompanhadas de um facial hair design demasiado duvidoso para o quotidiano. Pedrito Riveras, o maratonista sevilhano sub-4h BMTR, e Peter McRiver, o Jedi da Lama Abutrica, são alguns exemplos. Cansado de dar voltas ao meu primeiro e último nome, virei-me para outras opções do meu cartão do cidadão e inspirei-me numa personagem real que muito me fascina. Desta vez, seria Alex Supertramp. O wikipedia revelará mais, muito mais, mas adianto que o rapaz, o verdadeiro, também foi corredor, capitão de equipa de corta-mato na escola e motivava os colegas com frases como "corram contra as forças da escuridão, contra todo o mal do mundo, todo o ódio.". Não vou alongar-me sobre a personagem. Apenas direi que admiro a sua coragem e decisão. Não tanto, algumas das suas escolhas, pelas quais acabou por pagar bem caro.   


São 5:20 da manhã de Sábado. O sol já nasceu, mas pouca ou nenhuma agitação se nota na rua. Assim que entramos no carro, o rádio liga-se e está a passar “Breakfast in America” dos Supertramp. Seria um bom presságio? 24 horas depois, ainda não teria uma resposta definitiva para esta pergunta.





Desde os primeiros contactos com o trail que tenho algumas provas no topo do meu imaginário de glória, uma espécie de ranking de admiração e medo. Os Abutres: o inferno de inverno da Lousã que barrava atletas, primeiro com lama, depois com o relógio. O MIUT: uma distância e uma altimetria que pareciam estar só ao alcance dos deuses do Monte Ruivo. Conquistadas estas duas, faltava uma para completar a tríade. A mais receada de todas: a Freita.



Via Dolorosa. Goelas do Mundo. Muro. Almas Penadas. Portal do Inferno. Besta. Escadas do Martírio. Bradar aos Céus. Parecem expressões bíblicas para castigos divinos, mas na realidade são nomes de alguns dos trilhos que 202 penitentes voluntariamente decidiram enfrentar nos 100 kms da Freita 2021. Pode parecer marketing apocalíptico, mas não é marketing. Apenas metade chegaria ao fim. 

Desconhecendo a serra e olhando só para os números - 100 kms de distância com 6.600 m de desnível positivo -, parecia difícil, mas ao nível de outras provas, como o MIUT e até o Estrelaçor. A variável perigosa na equação freitiana, era sem dúvida o calor de Junho. Distância, desnível e calor são uma combinação ameaçadora, sim, mas o que tornaria a prova tão receada e idolatrada por tantos? A resposta chegaria de uma forma digna de um filme de terror. A Freita do José Moutinho - uma espécie de José Mourinho do trail nacional - acrescenta furos à dificuldade, mas acima de tudo, ao nosso bem-estar físico, de uma forma que eu não pensava ser possível. Como? Com uma inclinação simplesmente surreal em quase todas as subidas. Visualizemos o seguinte: se tentarmos fazer flexões no Trilho das Goelas do Mundo, por exemplo, faríamos umas 500. Porque seria como fazê-las contra a parede em vez do chão. Não satisfeito, o Sadistic One não só nos atira contra estas paredes de escalada, como as coloca umas a seguir às outras, do princípio ao fim, sem misericórdia, desenhando um perfil de altimetria que mais parece um serrote cortador de pernas. Quando paramos de subir, poucas são as descidas que permitem correr. A única coisa que desce depressa na Freita, é a nossa moral. 

 



Estou prestes a iniciar mais uma subida. Já tinha feito as goelas e uma outra também a pique. Enquanto retirava os bastões do cinto, ouço uma voz atrás de mim, que me diz: “Não é preciso”. Achando que poderia tratar-se de um daqueles extremistas anti-bastânicos, prossegui e retirei os bastões. Primeiro, apareceu a placa com o nome do trilho: “Muro”. Depois, vi a subida e percebi. Voltei a colocar os bastões no cinto, não por ser fácil, mas porque precisaria das mãos para conseguir subi-la.



Na Freita, descobri que há subidas com uma tal inclinação, que é preciso fazê-las com as mãos também. Considero que é este o factor que coloca a Freita noutro patamar de dificuldade, mas a prova não se distingue só pelas subidas. Para quem vai pela primeira vez, mesmo com todos os briefings, vídeos e testemunhos, a Freita é uma caixinha de surpresas. Ou melhor, uma caixa de Pandora. Há água por todo o lado e somos atirados para cima dela constantemente. Ora atravessando rios e ribeiros, a pé ou pendurados em cordas, ora subindo por eles acima. Na Freita, até as cascatas podem ser trepadas, como o épico Trilho da Besta, que de trilho não tem nada. É uma escalada vertical onde percorremos mais metros de altura do que metros de distância, por entre pedras, árvores e água a correr. A abundante água ao longo da prova, fresca e em perfeitas condições para beber, ajuda a compensar o outro factor chave, o calor, mas há um preço a pagar. Por causa da água, assei em locais do corpo onde o sol não chega, mas que nem eu me atrevo a enunciar aqui. 





Pouco depois de passar o abastecimento de Cabreiros, numa estrada junto ao rio, começo a ouvir música a altos berros. Não estou certo, mas o inconsciente diz-me agora que era a “Together in Electric Dreams”. A música animou o espírito, mas a atenção foi toda para o rio, onde vejo uma sereia de água doce, deitada sobre as pedras, ao sol, com roupa incerta. Uma alucinação da prova? Dois atletas que estavam por ali, não a viram, mas a Carmen, que me acompanhava, disse-lhes: “ele já lavou os olhos”. Foi real. 



A exigência técnica do piso da prova é quase sempre elevadíssima. Aos 20 kms já tinha duas quedas aparatosas e ainda cairia uma terceira até ao fim. Isto, se não contar com as vezes que caí no rio Paivô - um segmento tão divertido que, se tivesse banda sonora, só podia ser o genérico do Benny Hill. Perdi a conta ao número de vezes que quase torci os pés, chegando mesmo a ter uma torção dupla (quando o pé que compensa a torção, também torce). Receei não ser capaz de ultrapassar as barreiras horárias intermédias, depois de cerca de 20 kms entre Covelo de Paivô e o Portal do Inferno que demoraram uma eternidade. Sobre esta fase da prova, Moutinho afirma, com um sorriso orgulhoso, que “foi pensada para destruir os atletas”. Em todos os abastecimentos repeti sempre as mesmas perguntas: “Ainda chego a tempo do próximo corte?”, “A prova vai continuar assim tão difícil e técnica?”. As respostas foram sempre evasivas, contrariando a habitual conversa optimista da treta da organização, mas que aumentou o meu pessimismo (de referir a extrema simpatia e empenho de toda a organização, que nos serviu principescamente ao longo de toda a prova. Não havia de tudo em todo o lado, mas houve tudo o que seria preciso ao longo da prova, incluindo bifanas, sopa de legumes, canja, pizza, cerveja, etc…). Este receio levou-me a seguir sem a companhia da Carmen após a Aldeia da Pena. Só a partir da Lomba, km 79 e última barreira horária intermédia, comecei a relaxar um pouco. Mas a Freita ainda não se tinha dado como vencida e até ao final, ainda teria muito que bradar aos céus. 


- Ó Pedro, ainda agora vi uma rapariga sentada nesta pedra! Acho que tive uma alucinação!

- Não vi ninguém! Estás a falar a sério?!  

- Estava aqui!

- Carmen, sabes em que trilho estamos?

- …

- O Trilho das Almas Penadas.

- ...


As montanhas e os seus trilhos são uma óptima metáfora da vida. Nos 7 kms entre a Lomba e Albegaria da Serra, depois de dar a prova como feita, percebi a ilusão que é achar que temos tudo sob controlo. Terá sido este o grande erro do verdadeiro Alex Supertramp. Para lá da violenta subida do Trilho de Bradar aos Céus, mais uma daquelas a pique e, supostamente, a última dificuldade da prova, estava guardada uma surpresa. Uma parte da serra estava debaixo de uma intensa neblina e foi precisamente para lá que a prova seguiu caminho. Depois do medo de trepar paredes com pedras soltas e precipícios, o filme de terror tinha agora como protagonistas, o surpreendente frio e uma inacreditável cacimba típica de Janeiro, que mais parecia chuva. Tudo isto no topo da serra e de noite. O impermeável resolveu a questão do frio, mas nada havia a fazer quanto à cacimba que inutilizou os meus óculos e me deixou à mercê da minha miopia. Tive que abrandar, não conseguia ver bem a irregularidade do chão e as lages maiores, antes secas, estavam agora molhadas e escorregadias. Lá em cima, alguns pontos de passagem pareciam aqueles periclitantes caminhos de montanha do Senhor dos Anéis. Estreitas superfícies de pedra escorregadia à beira de precipícios, só com correntes e cabos para nos agarrarmos. O medo instalou-se, bem como a ideia de desistir ou de não chegar a tempo das 29 horas finais. Mas só havia uma hipótese. Descer o Trilho de Bradar aos Céus para voltar para a Lomba era impossível, tal era a sua inclinação (chegaria num instante, aos trambolhões), pelo que só dava para seguir em frente. Salvou-me o frontal. O meu farol da Alexandria. E as marcações exemplares, ora fitas, ora reflectores, ora ambos. Lá cheguei a Albergaria da Serra e entretanto o dia nascera. O piso e o tempo melhoraram. E voltei a ter uma ilustre e simpática companhia feminina para os kms finais. A Carla André, finalista de provas como a Badwater ou a Marathon Des Sables. Agora já pode acrescentar mais um feito: é finalista dos 100 da Freita e chegou ao mesmo tempo que eu. A meta já não escaparia e lá estavam os incansáveis RUN4FUN, que há muito já tinham terminado a sua Freita Kids Race, aos berros, para me receber ao fim de 26h46 de insanidade. Foi emocionante, embora o estado de perplexidade pelo que tinha acabado de fazer não tenha permitido grandes reações. Para fechar em beleza, pouco depois, chegaria a Miss Apito. Estava Freita para todos!


Depois da meta, o Rui Faria pediu ao Moutinho para tirar uma foto ao meu lado. Abraçou-me com um braço e com a outra mão deu-me uma chapadinha moralizadora nas minhas longas barbas. Disse-lhe que ele era um sádico. Não abanou, afinal de contas, segundo ele, até já o tinham chamado de “psicopata”. E a apontar para mim, disse aos meus colegas: “Ele é um herói da Marvel”. 




A Freita é o Monstro. Mas também é a Bela. Montanhas colossais de perder de vista. Rios de água cristalina. Cascatas. Florestas densas e verdes. Mulheres desnudas a apanhar sol no rio. A Freita é um paradoxo. Odeia-se e adora-se. Em simultâneo. Só a beleza da prova está à altura da sua dureza e é preciso ir lá para perceber. Como já li algures, para conhecer a Freita basta ir aos 65 kms. Mas para conhecer a Freita psicopata do Moutinho e tomar banho na sua imensa glória, é preciso ir aos 100. E se algum dia alguém estiver a pensar nisso, é só chamar o Supertramp e eu aparecerei para salvar do perigo. Do perigo de não ir. 


É RUN! É MAIS OU MENOS FUN! É RUN4FUN!


Semper Cralhes!






Comentários

  1. Como sempre, excelente e criativo relato. Parabéns Pedro Ribeiro, por mais uma enorme conquista ao alcance apenas de uns poucos, grandes atletas. Runabraços

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  2. Excelente relato Alex!

    "As montanhas e os seus trilhos são uma óptima metáfora da vida"

    A diferença é que nos trilhos podemos sentir o alivio e a alegria (cada um a sua maneira) de chegar ao fim. E damos por completo aquela etapa.

    Na vida apesar de ultrapassarmos as dificuldades que as vezes são montanhas que nos esmagam a alma com tanto sofrimento, não cosneguimos ou não temos a noção de levantar os braços e sentir feclicidade.
    Porque que sabemos que na vida parece que as montanhas e os precipicios não vão acabar nunca.

    Acho que estas aventuras te fazem bem.

    És o meu Héroi Marvel cralhes!

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  3. Foi limpinho, ao estilo do "veni vidi vici".
    Nunca duvidei que o Rapaz Maravilha (da Marvel) desse conta do recado. Parabéns.

    Mas agora a questão é: o que virá já a seguir?

    Adorei o relato, muito bom, obrigado Pedro.

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