A 1ª Maratona
Podia escrever um texto breve
sobre este tema, realçar um ou outro aspeto e passar à frente. Só que não, não
sinto que deva simplificar algo que demorou tanto tempo a construir e que tanto
respeito. Assim vou escrever uma crónica mais detalhada sobre esta caminhada: o
porquê de iniciar a mesma, o que foi o treino e a emoção da prova.
Vai dar pano para mangas mas
prometo a mim próprio que serão mangas curtas.
Antes de mais e porque são
devidas, existem duas estruturas fundamentais e que são o nosso porto de abrigo
e a quem deixo a minha gratidão.
A família: a minha esposa Paula
Miranda, a minha filha Catarina Miranda e o meu filho João Filipe Miranda.
Foram muitas as horas em que
estive ausente, em que a conjugação dos deveres e obrigações de esposo e pai
não foram fáceis, para não dizer mesmo, impossíveis. Obrigado por me aturarem,
compreenderem e aceitarem!
O grupo: que dizer do RUN 4 FUN?
O que se pode dizer de um grupo que nos acolhe, acarinha, desafia, apoia, acompanha
e motiva? Não há palavras pelo que um simples mas carregado obrigado tudo
significa!
Porque é que me meti nisto?
Porque é que em abril de 2018 me inscrevi numa maratona, a prova-rainha? Eu só
comecei a correr em julho de 2015, ou seja, "à mês e meio atrás".
Não sei! Não há uma explicação
lógica ou racional. Porque é que alguém se predispõe a sofrer durante tantos
meses para cruzar uma linha de meta? Ainda sem o saber de facto, tinha uma
noção clara que seriam meses de treino, preparação, sofrimento e obediência a um
plano de treinos que não é complacente com humores e birras. Ou treinas e te
empenhas ou fica sossegado porque não há meio-termo.
Mas coloca-se o desafio! Se
tantos conseguem, porque é que eu não consigo?
Talvez a resposta a esta pergunta
tenha sido dada pela minha filha em julho de 2018: “O pai já corre
meias-maratonas, já fez várias e acaba bem. Vai fazer a maratona porque quer
atingir algo mais, quer colocar um novo objetivo à sua frente. Não se explica,
sente-se.”
E é esse sentimento que vi bem
retratado no livro ‘Córrer o Morir’ de Kilian Jornet (skyrunner) e cuja
passagem é:
(...) Vi pessoas que, apesar de
chegarem depois de os primeiros já terem tomado duche, almoçado e de até já
terem dormido a sesta, se sentem vencedoras, e não trocariam o que sentem por
nada deste mundo. E invejo-as, porque, no fundo, não é por isso que corremos?
Para saber que somos capazes de vencer os nossos medos, e que a fita que
cortamos quando atravessamos a linha da meta não é sustida por assistentes mas
sim pelo que os nossos sonhos determinam? (...)"
É nesta perspetiva que dou início
à preparação para #sevilha2019
Colocado o objetivo, tinha chegado a hora de iniciar o compromisso com o plano de treinos. Começam as questões e as dúvidas. Falo com os “batidos”, os “mestres” e aponto para o Mr. Miyagi destas coisas: MyASICS (paz à sua alma, tão bom que era que foi abatido).
Com o plano traçado e bastante
tempo pela frente iniciei a minha preparação. Passei por todas as fases que o
meu Mr. Miyagi me indicou, progressivamente e sem atalhos (aqui aplica-se o tão
bonito estrangeirismo build-up).
Sendo metódico e com um
raciocínio altamente lógico (só me faltam os “abanos” à Spock) não me desviei e
também não inventei até que…
… até que a preparação é
interrompida em final de outubro de 2018, dia 27 mais precisamente! Inflamação
e edema do tibial posterior acima do maléolo. Era nesta fase que os volumes de
treino iam começar a aumentar.
Visita ao primeiro médico
ortopedista! Ecografia e nada de relevante mas com sinais da referida
inflamação já em regressão. Mas nesta altura os sintomas mudam e começam-se a
revelar dores associadas a fascite plantar. Mau!! Mau Mau!!! Hora de recorrer
ao armamento pesado e a tecnologia e know-how cutting-edge (isto em inglês tem
sempre mais pinta).
Segundo médico mas aqui a
conversa já não era para “meninos”. Prof. João Beckert aqui vou eu! Com uma
disponibilidade e um cuidado acima da média leva-me para uma segunda volta de
exames, a saber: Rx e exame de pressão plantar; ambos fundamentais mas ainda
assim inconclusivos. Nesta altura e embora já o tivesse feito, recebo
oficialmente ordem clinica para PARAR! Murro no estomago! Conversamos sobre o
plano, o objetivo, onde estou e o que necessito ainda de atingir. PARAR
continua a ser a palavra!
Os sintomas e dores permanecem e
parto para o último exame, ressonância magnética. Aqui jogava-se tudo. Estaria
o tibial posterior comprometido? Definitivamente? (existiam outros sintomas que
abriam a hipótese a este cenário).
Não, não estava! Nada foi detetado!
Estava 100% recuperado mas sem uma explicação clinica conclusiva. O próprio
médico ficou “sem palavras”. RECOMECE foi a ordem mas “veja como se sente, pode
não conseguir essa distância”! Nada mais interessou, o RECOMECE foi o que ficou
retido (ouvi qualquer coisa sobre correr e caminhar nos primeiros treinos só
que apenas retive no singular).
Os treinos recomeçam a 2 de
dezembro 2018! A componente cardiovascular estava diminuída, não ia conseguir
recuperar as distâncias que tinham ficado por fazer e já não havia plano!
Então aí tomei a resolução que
qualquer mente lógica faria: vou a jogo! Suo, sofro, corro e aguento a dor! O
plano passou a ser sobreviver à provação, tanto assim foi que até comecei a
treinar às 6h30 da manhã, coisa que para um tipo como eu é contranatura.
O grupo de treino aqui foi
fundamental, todos sem exceção. O apoio, o acreditar. Sem palavras!
Fui a todas as que pude e
consegui. Longos não falhei um que fosse! Doía, então não?! Mas sempre a
dobrar, sempre a somar. O objetivo está claro, o sonho comanda!
#sevilha2019, cheguei!
Estava à espera de sentir maior
apreensão, ansiedade ou, porque não, medo. Mas nada disso aconteceu. Senti-me
tranquilo e mentalizado para o desconhecido pois esta era a hora de provar a
mim mesmo que tinha capacidade de superar este desafio.
Estranhamente (ou não) senti uma
maior capacidade mental do que o habitual. Talvez utilizando um eufemismo
bastante comum a consiga descrever: “Oferecer o corpo às balas”; era este o sentimento
de dever, de missão, de abnegação (oh boy, e tão certo que estava!).
Acompanhado da família caminho
até à partida e despeço-me. Estava sozinho, era agora!
Ao entrar na caixa encontro logo
dois estreantes e companheiros de infindáveis treinos: Joana Soeiro e Nuno
“Sal” Alves; bom, bom, assim já não estou sozinho. Junta-se a nós o Pedro
Machado, a Sandra Simões, a Margarida Gonçalves, o Pedro Morgado e o José
Plácido. Casa e coração cheios!
PARTIDA! Nada de novo, um mar de
pernas e sapatilhas, o habitual para quem já tem umas quantas provas no baú. Só
se impunha a distância.
Os primeiros 10 kms passam
rápido, quase sem se dar conta. O percurso é variado, com bastantes alterações
de direção o que permite manter o espírito distraído e ocupado. Sinto-me bem,
“fresco como uma alface do Lidl”. Vamos lá, já não falta tudo.
Tudo decorre sem percalços e dou
por mim a chegar à marca da meia-maratona a cantar o refrão de uma das músicas que
me acompanharam. Metade já está, o ritmo vai dentro do projetado e quando sinto
que estou a embalar refreio o ânimo e reduzo. Mantenho o controlo emocional, é
bom, é bom! Tinha combinado cruzar-me com a minha família após o km 31 e agora
era esse o objetivo intermédio. Ver caras conhecidas e atestar de ânimo.
Passados alguns quilómetros vejo
a Sandra Simões sentada no lancil do passeio! Abro o “pisca” e encosto,
preocupado. A Sandra é dura de roer e tem uma preparação de meter inveja, logo
algo de real se passava. Felizmente era apenas um problema técnico com a
sapatilha, resolvido na hora.
Arrancamos os dois e apanhamos a
Margarida, a quem cumprimento e desejo felicidades. Avanço e sigo no meu ritmo
para o ansiado km 31.
Nos longos aprendi que a partir
do km 28 sinto uma quebra de rendimento, não o tão conhecido muro mas uma quebra,
um cansaço maior. E desta vez lá apareceu já perto do km 31. Nada de novo, tudo
dentro da normalidade, vamos lá manter o ânimo porque já só falta o habitual
treino de quinta-feira.
Depois do km 31, faço a curva e
ponho a cabeça a rodar de um lado para o outro à procura dos meus. Lá estão
eles! Fiesta!!! “Continua! Tu és capaz!! O Pedro Morgado acabou de passar!”,
foi com estas palavras que sigo o meu destino. Se o Pedro Morgado acabou de
passar, isto vai bem!
Ao chegar ao km 33 dá-se uma
estreia mundial. Mundial não, universal! Sofro, pela primeira vez na minha
vida, de uma cãibra em plena prova (ou treino). O adutor longo da coxa direita
prende instantaneamente. Sem qualquer alerta, aviso. Nada! Fico de perna
esticada em pleno meio da estrada a tentar que não se revolte ainda mais. A dor
é aguda e incapacitante.
Vou ao pé coxinho até ao passeio
e começo a massajar a coxa. Tinha sido plantada uma batata sem a minha
autorização. Alongo, volto a alongar e a massajar. O filho da mãe mantém-se
firme e hirto. Mas então? Como é que…? Vais bem, cansado é verdade, mas assim?
Vindo do nada? Passa-me tudo pela cabeça, TUDO!
Aproximam-se a Sandra e a
Margarida. A minha cara deve ter dito tudo! Param por mim, uma breve explicação
do sucedido e PLIM, o Mr. Spock (lembram-se da narração de ‘O TREINO’?) toma as
rédeas!
A Sandra trazia com ela uma
garrafa de água que não teria mais de 50ml (se tanto). O suficiente para um
comprimido de magnésio efervescente que me acompanha sempre (devo esta
aprendizagem ao meu amigo e companheiro José Matos). Garrafa na mão, pastilha
esmigalhada, engulo tudo! Até pedaços não dissolvidos.
Nisto passa o Pedro Machado que
pede desculpa de não poder parar (como eu o compreendo) e com ele arrancam a
Sandra e a Margarida. Fico ali, sentado, a massajar a coxa.
Dou mais 1 minuto e tinha de ser.
Se voltasse a contrair não valia a pena. Estaria feita e saia derrotado. Dou
uns passos e nada, um ligeiro trote e nada. BOA! ‘Bora lá! Se é para sofrer,
sofre e vai à luta.
Nisto encontro uma senhora do público
com uma lata daquele spray maravilha que todos conhecemos. Peço-lhe se me pode
aplicar na coxa e nem respondeu, senti logo o fresco e aroma do aerossol.
“Gracias!! Muchas gracias!”
Entro em modo de gestão. Embora a
paragem tenha sido forçada e obrigatória para recuperar aquele manhoso, os
restantes grupos musculares não gostaram da festa e agora reclamavam, muito.
Passo a Praça de Espanha e sigo! Há uma meta para cruzar e uma medalha com o
meu nome.
Chegado ao km 36 começo-me a
sentir mais pesado, preso e o ritmo fica mais lento. Ainda faltam 6 voltas ao
lago!
O Mr. Spock toma novamente as
rédeas: “Ó coisinho, é para acabar ou vais-te armar em parvo e deitar tudo a
perder? É que estes fulanos que te impelem para a frente já se uniram em sindicatos
e podem ir para greve geral sem pré-aviso. Lembras-te do que aconteceu à uns
quilómetros atrás? Já não há magnésio ó bacano!”
PAREI e CAMINHEI! Era para
alcançar a meta! Caminha 1 km, corre 1 km. Faz o que quiseres, vai de gatas, ao
pé-coxinho, mas gere o teu corpo. Era o que uma parte não afetada do meu
cérebro repetia. E assim fiz. O objetivo é terminar e com esta gestão queria
fazer os últimos 1.195 metros em corrida. Ou qualquer movimento semelhante.
Só que também não foi bem assim.
Isto para estreia meteu mais do que eu estava à espera.
Antes do km 41 passamos pelo
último pórtico, com direito a speaker, o qual me agarrou, dirigiu-me palavras
de incentivo, um forte aplauso de todos e vai, corre. Assim fiz, arranquei com
tudo o que me restava.
Passo o km 41 e encontro um
atleta português com que já me tinha cruzado várias vezes no percurso. Não o
conhecia de lado nenhum mas espelhava sofrimento e agonia. Disse-lhe para vir
comigo, que já não se volta para trás ou se desiste. Tentou e arrancou mas ao
fim de 3 passos pára e grita: “NÃO CONSIGO!!!”.
Desculpem-me, os puristas, pelo
que fiz, só que nunca ficaria bem comigo próprio. Virei-me para ele e retorqui:
“Se não acabas a correr, vais comigo a caminhar! Não vais ficar aqui, assim!”.
O Pedro, dorsal 11409, mal
conseguia colocar o pé no chão. O joelho esquerdo devia estar “desfeito”.
Provavelmente nem devia ter alinhado nesta prova, que não faz qualquer refém,
mas quem já ali chegou não merece ficar sem o sonho.
Braço por cima do meu pescoço, o
meu ombro direito por baixo e vamos para a frente! Não me calei durante esse
tempo, conversa da treta, risota, tudo o que me lembrasse servia para o
distrair. O que me disse comigo fica.
Neste último km, as palmas do
público, as palavras de alento dos atletas que por nós passavam, o respeito que
senti de todos os que por mim passavam enquanto “carregava” o Pedro. Não se
consegue descrever mas fiquei esmagado emocionalmente. Todo o sofrimento por
que tinha passado e estava a passar desapareceu. Só sentia felicidade e alegria.
Ao passarmos a rotunda que dá
acesso à reta da meta e se vê o pórtico da dita, a cara do Pedro iluminou-se e
aquele brilho nos olhos disse-me tudo. Era, também, a sua primeira maratona e ia
conseguir conclui-la.
Corremos, lado a lado, os últimos
195 metros e dei-lhe a primazia de cortar a linha de meta. Mereceu!
Mereci! Merecemos todos!
À minha espera tinha os meus RUN
4 FUN. O padrinho - Fernando Rosete - lá estava, como um falcão, a aguardar,
serenamente mas alerta! Calculo que o tenha deixado preocupado e muito.
Pedro Morgado, Luis Carvalho, Rui
Faria, Fernando Rosete, José Plácido. Recordo-me destes porque foram os
primeiros que vi (o Faria, com aquele bigode, até parecia um Paco Manolo, mal o
reconheci). Desculpem-me os outros porque nesta altura a emoção é muito forte e
tinha como objetivo final encontrar a minha família e com eles partilhar a
minha conquista.
Consegui! Sou um FINISHER da MARATONA.
Fantástico!!! Excelente texto! Parabéns João "Maratonista "!
ResponderEliminarBelo relato e a parte final a a"carregar" o Pedro é extraordinária. Parabéns João pela tua bem organizada e magnífica descrição de uma difícil conquista, mas que nos devolve todo o esforço, muitas vezes, após cruzarmos a meta.
ResponderEliminarRunabraços
Muito bom João, tiveste de tudo e foste grande ao ajudar o Pedro. Parabens e obrigado por partilhares um relato tão interessante.
ResponderEliminarAlfredo