Um sonho com 101 km
Autor: Orlando Ferreira
(20 de Maio de 2014)
O sonho Ronda (Málaga) surgiu quando recomecei a correr com maior regularidade e comecei consultar sites de provas e ver as descrições dos atletas. Pelas descrições que lia parecia ter uma grande envolvência, era muito bem organizada (La Legión), o traçado parecia "fácil" e a distância era um grande desafio. A inscrição decorreu como habitualmente em 2 fases e foi difícil de conseguir, tendo utilizado vários browsers em simultâneo para se conseguir aceder ao site e efectuar o registo. Quando surgiu a mensagem Plaza Asignada foi realmente uma grande alegria... para mim porque para a família seria o início de uma fase de preocupações. Ainda procurei alguma informação sobre possíveis treinos para provas deste género mas não encontrei nada compatível com a minha (incerta) disponibilidade para os treinos. Assim, optei por fazer "o meu treino" que foi basicamente correr o mais que possível e em elevado número de kms sendo que comecei também a incluir a gestão de alimentos e a caminhada. O objectivo era nunca terminar os treinos em exaustão e estar sempre com força suficiente para o treino seguinte. Durante o mês de Janeiro fiz aproximadamente 225 kms (em 18 treinos), em Fevereiro foram 176 kms (em 14 treinos, incluindo a maratona de Sevilha), em Março foram 335 kms (em 19 treinos) e em Abril foram 361 (em 22 treinos). Foram quase 1100 kms em 4 meses. Em alguns fins de semana corri no Sábado de manhã, à tarde/noite, no Domingo de manhã e à tarde/noite. A verdade é que mesmo com todos estes kms as dúvidas em relação a como o corpo iria reagir ao fazer os 101 kms seguidos eram muitas. Aproveitei e participei também em alguns treinos onde estariam os experientes Cientouneros para conseguir obter mais informações que se revelariam fundamentais para concretizar o sonho. No meu currículo apenas constava uma ultra, a UMA com 43 kms na areia e 5h19 de duração (num dos melhores anos do areal) e em relação a trails o mais longo foi de aproximadamente 30 kms e sem grandes desníveis. As conversas com o Jorge Esteves, o José Carlos Melo, o Miguel San-Payo, o Nuno Tempera e o Teodoro Trindade foram muito importantes e a eles devo parte do meu sucesso. Obrigado. Outra das minhas preocupações era o meu joelho esquerdo que por vezes dava sinais de querer repetir a lesão que ocorreu em plena maratona de Lisboa em 2012. Tentando evitar a sua repetição, fiz os alongamentos que havia feito durante o tratamento e terminava os banhos com água fria em ambas as pernas (ainda bem que o tempo entretanto aqueceu!). A semana que antecedeu a viagem foi de enorme expectativa e bastante descanso de kms, não me queria aleijar antes de lá chegar. A viagem havia sido combinada quando em conversa com a Filipa Ferro ela me disse que iria com a Carla André e o Rui Gama. "Meti conversa" com a Carla no FB e ficou marcado o meu lugar; posteriormente tive a oportunidade de fazer um treino de 25 kms na Serra de Sintra (a sua casa) e apalavrámos mais algumas coisas mas a marcação da casa e tudo o resto fez-se depois via chats no FB. Também não tenho dúvidas que a companhia nesta viagem teve uma grande responsabilidade no sucesso. A Carla (que havia feito 70 kms em 2013 e tinha uns ajustes a fazer com a meta) e o Rui são bastantes experientes nas andanças de trails de muitos e muitos kms e eu e a Filipa íamos no carro a ouvir as suas façanhas e interiorizar... e a pensar na nossa "pequenez" nestas andanças. Eu no meu caso junto também a palavra amadorismo. Eu utilizo uns ténis "normalíssimos", umas meias de compressão da SportZone e a honrosa camisola laranja... e levo um camelbak que comprei à uns anos para quando fosse andar de bicicleta. Na viagem de carro até Ronda, além do prazer enorme em ouvir todas as experiências o que retive de mais importante foi a palavra paciência. Eu sou muito competitivo e a verdade é que nunca havia feito nenhuma prova em que a gestão do esforço seria baseada em tempo e não em kms. Tendo em conta os meus treinos e a altímetria, pensava que "facilmente" faria os cerca de 55kms iniciais e havia que gerir bem o esforço para chegar a esse ponto para pelo menos caminhar o restante; e isso daria um tempo entre 16 a 18h. Chegados a Ronda fomos levantar os dorsais mas o meu nome não constava nas listagens... nem por apelido. Diziam eles: todos os anos é este problema com os nomes dos portugueses... Já estava a ver o caso mal parado até porque inicialmente todos os 4 tivemos o mesmo problema mas enquanto os outros 3 já tiravam fotos com os respectivos dorsais ainda eu aguardava pelo "chefe" na secção de incidências. Quando o "chefe" regressou de almoço e após algumas dificuldades iniciais lá encontrou a inscrição e me deu um número de dorsal para ir levantar... mas de novo ninguém encontrava o dorsal (ai, ai...) e novo regresso às incidências; umas "caretas" depois de quem estava farto de aturar o Tuga eis que me entrega finalmente não um número mas o dorsal (1295). Lá tirámos as fotos da praxe com os dorsais e fomos almoçar. Escolhemos um local que aparentava ter uns menus comestíveis e lá nos conseguimos sentar. Depois de fazermos os pedidos (de 1º e 2º pratos) e uma grande espera eis que o empregado volta para nos informar que já não havia o 1º prato e lá tivemos que escolher outro; quando acabámos o 1º prato a história repetiu-se, uma espera e acabaram por dizer que o 2º prato escolhido logo no início já não havia! Enfim, são destas histórias que tornam a "coisa" mais engraçada e todos levámos tudo na brincadeira. A casa que havíamos alugado situava-se a cerca de 30 kms de Ronda mas tinha uma vista fabulosa. A zona exterior (incluindo a piscina) e também o seu interior era muito agradável/acolhedor. Durante toda a estadia (antes e depois da corrida) foi muito fácil o consenso sobre o espaço e tempos. Muito facilmente se acordou onde ficaria cada um e também os horários para levantar, sair, etc. Parecia que todos nos conhecíamos à vários anos e já tínhamos muitas experiências iguais anteriores. O jantar foi na Pasta Party e foi possível ver o local onde seria a chegada. Já havia visto vários videos de chegada e já "conhecia" o sitio mas ao vivo e a cores, com milhares de pessoas, a sensação é outra. E a bandeira portuguesa fez "furor".
A noite anterior à corrida, como seria de esperar, foi muito mal dormida; não tanto pelo nervosismo mas mais pela expectativa, pelo desconhecimento da forma como o corpo reagiria ao estar tantas horas em movimento. Também "vi o filme" da minha passagem por Setenil e várias vezes o cortar da meta. Faltava mesmo era viver essa experiência! Decidi que deixaria no quartel (km 75,4) uma mochila com outros ténis, meias, calças, camisola térmica, creme para os pés e uma outra lanterna. No camelbak levaria: meias e permeiras de compressão, blusão corta-vento/reflector, apito, frontal, bandas adesivas, protector solar, manta térmica e lenços de papel. De comida levava: algumas barras de cereais, pães pequenos com presunto, uma pequena garrafa com sal, açúcar e sumo de limão e cerca de 1l de água; levava também uma garrafa vazia que ia enchendo nos abastecimentos e despejava para o reservatório no camelbak (e que muito jeito deu). De manhã quando chegámos a Ronda deixámos o carro bem perto da chegada e tivemos de fazer ainda uns 2 ou 3 kms para a partida. Quando chegámos ao estádio o ambiente era extraordinário, era uma envolvência de atletas e apoiantes enorme. Encontrámos a Analice e mais outros portugueses e tirámos umas fotografias de grupo onde uma vez mais a bandeira portuguesa foi muito cobiçada.
Infelizmente a parte final do percurso, além de ser feita já de noite tem maior nível de dificuldades; se caminhar já custava, as descidas eram feitas de lado com passos muito pequenos e tentando minimizar as dores. A cabeça foi estando entretida a pensar na família e nos amigos e os kms (difíceis) iam-se fazendo a coxear e com muitas dores. No abastecimento dos 87 kms obriguei-me a ficar 15m sentado num banco a descansar, pensar no que já havia conseguido, no que ainda faltava e, claro que também pensava nos que mesmo a pouca distância da meta são forçados a desistir. Foram uns kms finais com muitas, muitas dores mas a subida final para Ronda foi feita em passada larga a ultrapassar alguns atletas e já com a sensação de que estava feito! Depois da subida é feita a entrada em Ronda onde se corre talvez 1 km. Esse km foi a loucura total!!! Logo que tinha acabado a subida tirei a bandeira portuguesa e, sem dores (!!!), percorri esse km de bandeira bem no ar. Já passava das 3h30 da madrugada mas ainda estavam umas dezenas de pessoas a incentivar quem passava. Foram uns minutos muito emotivos; chegar à Alameda del Tajo, cruzar a meta foi libertador e gratificante como em nenhuma outra prova havia sido. E a camisola de Cientounero já era minha!
A bandeira portuguesa, que como se sabe tem um peso enorme quando se passa a fronteira, a camisola RUN4FUN que simbolizou o apoio de todos os laranjas e, principalmente, a fotografia que trazia no camelbak e que além da família simbolizava todos os meus amigos, foram 3 símbolos que me foram empurrando ao longo dos 101 kms e das 16h48m08s. Além de todos estes apoios, é claro que eu também estava muito orgulhoso comigo por ter conseguido cumprir o objectivo proposto. A Carla e o Rui já tinham terminado e estavam também muito satisfeitos com os resultados atingidos; depois de alguma conversa fui, com muita dificuldade, comer. Mal conseguia por o pé direito no chão tal eram as dores na canela mas, sozinho e de bandeira nos ombros fui buscar a comida e sentei-me a libertar a emoção... e também algumas lágrimas. Estava feito, tinha sido muito doloroso mas estava feito. Fui depois para o carro a arrastar-me e à espera da Filipa que entretanto também chegou triunfalmente na companhia da Carla que a tinha ido buscar à entrada de Ronda. Assim que chegámos a casa fui por as pernas dentro da água fresquinha da piscina tentando acalmar as dores na canela. Estranhamente não sentia dores musculares e continuo a pensar que não corri muito, nunca cheguei ao limite do esforço e se não fossem as dores estou certo que teria demorado "bem menos". Fica a experiência única de participar numa prova com uma grande envolvência e que superou as minhas expectativas. Ficou também uma canelite que mesmo após uma semana de muito gelo ainda vai demorar mais alguns dias a passar. Estou muito grato a todos pelo incentivo e apoio antes, durante e após a prova e aconselho a participação para quem queira tentar uma prova desta distância.
(20 de Maio de 2014)
O sonho Ronda (Málaga) surgiu quando recomecei a correr com maior regularidade e comecei consultar sites de provas e ver as descrições dos atletas. Pelas descrições que lia parecia ter uma grande envolvência, era muito bem organizada (La Legión), o traçado parecia "fácil" e a distância era um grande desafio. A inscrição decorreu como habitualmente em 2 fases e foi difícil de conseguir, tendo utilizado vários browsers em simultâneo para se conseguir aceder ao site e efectuar o registo. Quando surgiu a mensagem Plaza Asignada foi realmente uma grande alegria... para mim porque para a família seria o início de uma fase de preocupações. Ainda procurei alguma informação sobre possíveis treinos para provas deste género mas não encontrei nada compatível com a minha (incerta) disponibilidade para os treinos. Assim, optei por fazer "o meu treino" que foi basicamente correr o mais que possível e em elevado número de kms sendo que comecei também a incluir a gestão de alimentos e a caminhada. O objectivo era nunca terminar os treinos em exaustão e estar sempre com força suficiente para o treino seguinte. Durante o mês de Janeiro fiz aproximadamente 225 kms (em 18 treinos), em Fevereiro foram 176 kms (em 14 treinos, incluindo a maratona de Sevilha), em Março foram 335 kms (em 19 treinos) e em Abril foram 361 (em 22 treinos). Foram quase 1100 kms em 4 meses. Em alguns fins de semana corri no Sábado de manhã, à tarde/noite, no Domingo de manhã e à tarde/noite. A verdade é que mesmo com todos estes kms as dúvidas em relação a como o corpo iria reagir ao fazer os 101 kms seguidos eram muitas. Aproveitei e participei também em alguns treinos onde estariam os experientes Cientouneros para conseguir obter mais informações que se revelariam fundamentais para concretizar o sonho. No meu currículo apenas constava uma ultra, a UMA com 43 kms na areia e 5h19 de duração (num dos melhores anos do areal) e em relação a trails o mais longo foi de aproximadamente 30 kms e sem grandes desníveis. As conversas com o Jorge Esteves, o José Carlos Melo, o Miguel San-Payo, o Nuno Tempera e o Teodoro Trindade foram muito importantes e a eles devo parte do meu sucesso. Obrigado. Outra das minhas preocupações era o meu joelho esquerdo que por vezes dava sinais de querer repetir a lesão que ocorreu em plena maratona de Lisboa em 2012. Tentando evitar a sua repetição, fiz os alongamentos que havia feito durante o tratamento e terminava os banhos com água fria em ambas as pernas (ainda bem que o tempo entretanto aqueceu!). A semana que antecedeu a viagem foi de enorme expectativa e bastante descanso de kms, não me queria aleijar antes de lá chegar. A viagem havia sido combinada quando em conversa com a Filipa Ferro ela me disse que iria com a Carla André e o Rui Gama. "Meti conversa" com a Carla no FB e ficou marcado o meu lugar; posteriormente tive a oportunidade de fazer um treino de 25 kms na Serra de Sintra (a sua casa) e apalavrámos mais algumas coisas mas a marcação da casa e tudo o resto fez-se depois via chats no FB. Também não tenho dúvidas que a companhia nesta viagem teve uma grande responsabilidade no sucesso. A Carla (que havia feito 70 kms em 2013 e tinha uns ajustes a fazer com a meta) e o Rui são bastantes experientes nas andanças de trails de muitos e muitos kms e eu e a Filipa íamos no carro a ouvir as suas façanhas e interiorizar... e a pensar na nossa "pequenez" nestas andanças. Eu no meu caso junto também a palavra amadorismo. Eu utilizo uns ténis "normalíssimos", umas meias de compressão da SportZone e a honrosa camisola laranja... e levo um camelbak que comprei à uns anos para quando fosse andar de bicicleta. Na viagem de carro até Ronda, além do prazer enorme em ouvir todas as experiências o que retive de mais importante foi a palavra paciência. Eu sou muito competitivo e a verdade é que nunca havia feito nenhuma prova em que a gestão do esforço seria baseada em tempo e não em kms. Tendo em conta os meus treinos e a altímetria, pensava que "facilmente" faria os cerca de 55kms iniciais e havia que gerir bem o esforço para chegar a esse ponto para pelo menos caminhar o restante; e isso daria um tempo entre 16 a 18h. Chegados a Ronda fomos levantar os dorsais mas o meu nome não constava nas listagens... nem por apelido. Diziam eles: todos os anos é este problema com os nomes dos portugueses... Já estava a ver o caso mal parado até porque inicialmente todos os 4 tivemos o mesmo problema mas enquanto os outros 3 já tiravam fotos com os respectivos dorsais ainda eu aguardava pelo "chefe" na secção de incidências. Quando o "chefe" regressou de almoço e após algumas dificuldades iniciais lá encontrou a inscrição e me deu um número de dorsal para ir levantar... mas de novo ninguém encontrava o dorsal (ai, ai...) e novo regresso às incidências; umas "caretas" depois de quem estava farto de aturar o Tuga eis que me entrega finalmente não um número mas o dorsal (1295). Lá tirámos as fotos da praxe com os dorsais e fomos almoçar. Escolhemos um local que aparentava ter uns menus comestíveis e lá nos conseguimos sentar. Depois de fazermos os pedidos (de 1º e 2º pratos) e uma grande espera eis que o empregado volta para nos informar que já não havia o 1º prato e lá tivemos que escolher outro; quando acabámos o 1º prato a história repetiu-se, uma espera e acabaram por dizer que o 2º prato escolhido logo no início já não havia! Enfim, são destas histórias que tornam a "coisa" mais engraçada e todos levámos tudo na brincadeira. A casa que havíamos alugado situava-se a cerca de 30 kms de Ronda mas tinha uma vista fabulosa. A zona exterior (incluindo a piscina) e também o seu interior era muito agradável/acolhedor. Durante toda a estadia (antes e depois da corrida) foi muito fácil o consenso sobre o espaço e tempos. Muito facilmente se acordou onde ficaria cada um e também os horários para levantar, sair, etc. Parecia que todos nos conhecíamos à vários anos e já tínhamos muitas experiências iguais anteriores. O jantar foi na Pasta Party e foi possível ver o local onde seria a chegada. Já havia visto vários videos de chegada e já "conhecia" o sitio mas ao vivo e a cores, com milhares de pessoas, a sensação é outra. E a bandeira portuguesa fez "furor".
A noite anterior à corrida, como seria de esperar, foi muito mal dormida; não tanto pelo nervosismo mas mais pela expectativa, pelo desconhecimento da forma como o corpo reagiria ao estar tantas horas em movimento. Também "vi o filme" da minha passagem por Setenil e várias vezes o cortar da meta. Faltava mesmo era viver essa experiência! Decidi que deixaria no quartel (km 75,4) uma mochila com outros ténis, meias, calças, camisola térmica, creme para os pés e uma outra lanterna. No camelbak levaria: meias e permeiras de compressão, blusão corta-vento/reflector, apito, frontal, bandas adesivas, protector solar, manta térmica e lenços de papel. De comida levava: algumas barras de cereais, pães pequenos com presunto, uma pequena garrafa com sal, açúcar e sumo de limão e cerca de 1l de água; levava também uma garrafa vazia que ia enchendo nos abastecimentos e despejava para o reservatório no camelbak (e que muito jeito deu). De manhã quando chegámos a Ronda deixámos o carro bem perto da chegada e tivemos de fazer ainda uns 2 ou 3 kms para a partida. Quando chegámos ao estádio o ambiente era extraordinário, era uma envolvência de atletas e apoiantes enorme. Encontrámos a Analice e mais outros portugueses e tirámos umas fotografias de grupo onde uma vez mais a bandeira portuguesa foi muito cobiçada.
Depois da partida das bicicletas e logo que abriram os acessos aos corredores fomos para a partida tentando não ficar muito para trás. Estava muito calor (certamente mais de 30º) e estivemos cerca de 30m a aguardar pela partida que seria dada às 11h. Aí já havia algum nervosismo mas sempre com muito boa disposição entre todos. Como habitualmente trocámos votos de boa corrida e tudo corresse de acordo com os objectivos traçados. Depois do habitual "discurso" do General Jefe de la Brigada de la Legión, eis que é dado o tiro de partida e lá vamos nós para a grande aventura! A parte inicial após a saída do estádio é feita nas ruas de Ronda ladeadas por milhares de pessoas a incentivar "os locos" (fez-me lembrar Sevilha) e faz-se a ritmo lento com algumas pessoas já a caminharem. Os kms iniciais são feitos com muita gente mas sem atropelos e quando se chega às subidas praticamente todos caminham e raramente se vê alguém a tentar ultrapassar (em corrida). O ritmo que fazia era calmo e sempre que havia subidas eram feitas a andar; mesmo quando após uma subida havia uma recta e depois outra subida, a recta era feita a andar; não queria fazer constantes mudanças de ritmos. Os caminhos eram maioritariamente estradões mas muita pedra e muita dela solta. Com frequência bebia água (foram muitos litros ao longo de toda a prova) e a 1ª sandes de presunto foi com cerca de 1h de prova, perto dos 10 kms. As outras sandes fui comendo mas nem me recordo quando. Lembro-me que num dos abastecimentos iniciais comi um donuts e aproveitei para ficar 1m na sombra e voltar a encher quase todo o reservatório. Ao longo do percurso são muitos os populares que se juntam à festa e, além dos 20 pontos de abastecimento, oferecem "o que podem"; lembro-me de num sítio quase à saída de Ronda estar uma criança a dar uns rebuçados, mais à frente estavam umas senhoras a dar fruta e gomas (que aproveitei) e em alguns locais estavam com mangueiras a "regar" e refrescar quem passava. A passagem pela zona do campo de tiro estava cheia de apoiantes que iam fornecer alimentos/bebidas a alguns atletas e era a única zona onde nos cruzávamos com os outros participantes. Alguns kms depois, num dos abastecimentos quando já ia a sair, vejo o Rui Gama chegar e acabamos por fazer alguns kms juntos. Ele já estava com bastantes dores porque tinha um pé elástico que estava demasiado apertado, eu já começava a sentir algumas dores do que deveriam ser bolhas nos pés. Acabámos por parar uns minutos. O Rui tirou o pé elástico e eu coloquei umas bandas adesivas. Entretanto voltei a correr sozinho. Por volta do km 30, numa das maiores subidas (4 kms com 9%) quando íamos todos a andar, eis que alguém me passa a correr... era a Analice; é incrível a força desta jovem de 70 anos. Depois dessa subida ainda me voltei a cruzar novamente com a Analice mais à frente; ela tinha estado parada num abastecimento pensando que era um ponto de controlo; tinha molhado o passaporte e perguntou-me se tinha algum lenço para o limpar; dei-lhe um lenço e tive o prazer de a acompanhar durante uns minutos enquanto ela comentava a fotografia que eu trazia na mochila; depois apareceu uma subida e ela seguiu ao seu ritmo, e eu caminhei. Tirando as bolhas que já sentia nos pés, o percurso até Setenil (aproximadamente 55 kms) passou sem grande cansaço/esforço, portanto física e psicologicamente estava muito bem. Fui mantendo a família a par dos feitos já conseguidos e a minha filha ia actualizando o FB. A passagem por Setenil é muito gira com as centenas de pessoas nas esplanadas a incentivar; também a beleza do local ajuda animicamente porque quebra a monotonia. Aproveitei e sentei-me num banco de jardim para ver o estado dos pés. Tal como previra já tinha uma valentes bolhas; troquei as bandas adesivas e as meias; tinha umas meias altas e troquei por meias "curtas" e perneiras de compressão. No abastecimento de Setenil aproveitei para comer uma sandes e comer um bocado de chocolate que me soube bastante bem. Pouco depois comecei a sentir dores na canela direita e com maior intensidade nas descidas. Os 60 kms iniciais haviam sido percorridos em aproximadamente 7h30m (incluindo as paragens) e isso correspondia ao que pensava conseguir. A partir daqui era apenas gerir o esforço para nunca atingir o limite, continuar a correr quando possível e caminha/descansar noutras ocasiões. O pensamento era: falta "apenas" uma maratona. Entretanto as dores na canela intensificaram-se e preparei-me mentalmente para fazer a maratona a andar... o que corresponderia a cerca de 8h, ou seja, praticamente o mesmo que já havia feito. É claro que para quem tinha feito cerca de 60 kms em 7h30 ter de fazer quase 40 kms a arrastar-se não era uma ideia muito agradável, mas se era assim que teria de ser, assim seria. Cheguei ao quartel (km 75,4) cerca com cerca de 10h30m de prova, já quase mesmo ao anoitecer. Fui buscar o saco para trocar os ténis e meias e uma vez mais confirmei o estado lastimável dos pés. Como alguém diz, o quartel parece em alguns aspectos um "cemitério"; vê-se chegar atletas num estado de completa exaustão e alguns deles já não continuam a prova. Quando comecei a comer o hamburguer (seco) e comer a sopa (que não percebi do que era, apenas que era bastante salgada e acabei por beber como se fosse bebida) encontrei o Rui Gama que me disse que iria levar uma massagem. Não fazia ideia que existia essa zona de apoio mas decidi logo que também lá iria. Quando me inscrevi para a massagem e disse que também tinha bolhas nos pés fui logo encaminhado para uma marquesa para que fosse logo tratado. Fizeram o melhor que conseguiram e certamente ajudou a conseguir fazer os restantes 25 kms; quanto à massagem, se assim se pode chamar, na canela em nada resultou. Quando saí do quartel, por volta das 23h, telefonei para o meu irmão e disse-lhe logo que o resto seria a caminhar e portanto teria mais umas 4 a 5 horas até ao final. Não seriam umas dores "horríveis" que me haveriam de impedir de terminar... era apenas uma questão de paciência e, já que não tinha cronómetro, ia fazendo as contas a cerca de 10m/km.
Infelizmente a parte final do percurso, além de ser feita já de noite tem maior nível de dificuldades; se caminhar já custava, as descidas eram feitas de lado com passos muito pequenos e tentando minimizar as dores. A cabeça foi estando entretida a pensar na família e nos amigos e os kms (difíceis) iam-se fazendo a coxear e com muitas dores. No abastecimento dos 87 kms obriguei-me a ficar 15m sentado num banco a descansar, pensar no que já havia conseguido, no que ainda faltava e, claro que também pensava nos que mesmo a pouca distância da meta são forçados a desistir. Foram uns kms finais com muitas, muitas dores mas a subida final para Ronda foi feita em passada larga a ultrapassar alguns atletas e já com a sensação de que estava feito! Depois da subida é feita a entrada em Ronda onde se corre talvez 1 km. Esse km foi a loucura total!!! Logo que tinha acabado a subida tirei a bandeira portuguesa e, sem dores (!!!), percorri esse km de bandeira bem no ar. Já passava das 3h30 da madrugada mas ainda estavam umas dezenas de pessoas a incentivar quem passava. Foram uns minutos muito emotivos; chegar à Alameda del Tajo, cruzar a meta foi libertador e gratificante como em nenhuma outra prova havia sido. E a camisola de Cientounero já era minha!
Autor: Orlando Ferreira
Data: 20 de Maio de 2014
Data: 20 de Maio de 2014
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