Trilhos dos Reis 2023
“I am the sum total of everything that went before me, of all I have been seen done, of everything done-to-me. I am everyone everything whose being-in-the-world affected was affected by mine. I am anything that happens after I'm gone which would not have happened if I had not come.”
― Salman Rushdie, Midnight's Children
O que é o destino?
O Destino é
geralmente concebido como uma sucessão inevitável de acontecimentos
relacionada a uma possível ordem cósmica. Portanto, segundo essa
concepção, o destino conduz a vida de acordo com uma ordem natural,
segundo a qual nada do que existe pode escapar. - Wikipédia
Estamos sujeitos ao destino? Somos o produto do Acaso e da Necessidade?
Ou temos livre escolha?
O Acaso e a Necessidade
são conceitos filosóficos diametralmente opostos, mas que se tocam nas
suas consequências: Na verdade não importa se os eventos não passam de
uma sucesssão de acasos gratuítos e imprevisíveis, ou se são comandados
por uma necessidade férrea em que cada evento implica necessaria e
suficientemente o seu próximo. Em qualquer uma dessas molduras, não
temos opção.
Para que as nossas escolhas pudessem ser
verdadeiramente livres teria que existir algo fora do mundo físico que
comandasse as nossas ações, um "espírito" ou "alma" imateriais.
Essa
alma teria que existir num plano externo ao nosso universo físico e
teria necessariamente de conter um mecanismo pelo qual pudesse agir
sobre o mundo material. O famoso "erro de Descartes" em que uma pequena glândula, a glândula pineal, faria a ponte entre dois mundos irreconciliáveis. René Descartes acreditava que a glândula pineal seria a "principal sede da alma". Ora a ciência moderna não encontra lugar para essa hipótese. "Hypotheses non fingo"
O
que determinou que eu, Luis Matos Ferreira, tivesse chegado até ao
ponto exato no espaço-tempo em que me encontro? Foi um universo
pre-existente e fixo, em que não há lugar para um futuro ou passados em
construção? Um bloco quadridimensional estático onde a minha consciência
se desloca como se fora uma luz que ilumina um determinado caminho? E
que consciência é essa, mera observadora de uma realidade inalterável?
Ou sou um joguete de uma agitação térmica, de um movimento browniano que me lança para aqui e para ali, ao sabor de um movimento aleatório que vai bifurcando o universo à medida que a função de onde colapsa e me torna num mero espetador da minha própria história?
O livre arbítrio é um conceito incompatível com tudo o que a ciência moderna nos diz. No entanto sentimo-nos mestres e senhores da nossa alma, comandantes do nosso destino. Ilusão ou realidade, eu sinto que tenho agência sobre os meus atos.
Como cheguei até aqui? 55 anos depois do inicio de uma existência agitada e turbulenta, que forças me fizeram desembocar em Oeiras às 18 horas e 30 minutos do dia 13 de Janeiro do ano de 2023, segundo o Calendário Gregoriano? Junto à porta do prédio, esperando pela boleia do automóvel que me transportaria para mais uma aventura.
Estou absorto por estes pensamentos quando eis que os companheiros de viagem, chegam, o Zé Manso e a Sara Catita. Também eles imersos no irresestível fluxo universal que os trouxe até à minha linha espaço-temporal, no impreciso aqui e agora da minha mente.
Assim como o Dr. Johnson refutou o Imaterialismo de George Berkeley, chutando uma pedra, também nós procuramos fugir à imaterialidade desta existência hipertextual, imergindo no mundo material e concreto de uma natureza mais um menos pristina e que nos chuta de volta.
A conversa a bordo é animada e permanente. O Manso vai conduzindo o automóvel por um labirinto de caminhos que se bifurcam e se voltam a fundir, embalado pelo beca-beca. Chegamos a Vendas Novas para as bifanas e sopas da praxe.
Juntam-se-nos a Ana Chocalheiro, a Débora Almeida, o Hugo HDP, o João Silva Antunes e o Pedro Fonseca. Agora somos 8 a percorrer a mesma linha espaço-temporal.
Daí partimos para o nosso destino, na Pensão Destino, Castelo de Vide.
Belo destino o nosso. A Pensão é muito agradável. Mas ainda antes disso mergulhamos de cabeça numas belas cervejas artesanais na Cervejaria Barona. Animação garantida até horas da madrugada.
Sábado, após uma noite repousada (há meses que não dormia tão bem), saímos para almoçar. Fomos até Portagem, nas faldas do Marvão. O almoço em si foi uma aventura. Para além de bem regado, foi também muito bem conversado. O Manso mete conversa com a proprietária e toma conhecimento da história de Ema, ex-Timóteo que casou com o Cabo da GNR. Quis o destino que Ema tivesse nascido no corpo de Timóteo. E foi esse mesmo destino que levou o Cabo a cair de amores por Ema/Timóteo. A população quotizou-se e subsidiou a transformação. Portugal pátria minha, por isso é que eu te adoro: és capaz do pior e do melhor.
"Tinha assim um corpo igual ao meu" - dizia o senhor de robustos membros e grossos dedos, que parecia ter saido diretamente de uma linha de montagem de sólidos armários de Mogno. Uma estampa pensámos nós. Não admira que se sentisse melhor num corpo feminino.
- Sabem como se faz?
- Não, conte lá amigo
- Corta-se e enfia-se uma prega de pele para dentro.
Por esta altura a Sara e eu trocamos olhares de soslaio e eu sinto-me no iminente risco de soltar alguma gargalhada bem sonora, que contive a muito custo. Finda a lição de anatomia e cirurgia plástica a conversa foi ganhando cada vez maior fluidez.
"Se vires um monhé e uma cobra, mata primeiro o monhé"
a propósito da tez do atual primeiro ministro.
Tolerancia na identidade de género e intolerância na cor-da-pele. Portugal, és único.
Os nossos anfitriões foram inexcedíveis na sua alegria e calor humano.
E por fim buscar os dorsais e jantar em Portalegre, no requintado Sal e Alho, etc.
O Luís Afonso juntou-se-nos na dormida.
Destino Pensão Destino, xixi cama.
Alvorada às 7h. Lauto pequeno-almoço, de abalada para Portalegre. Está fresco mas não muito. Os chuvisco também parecem ser de pouca dura. Vai-se preparando um excelente dia para correr, haja pernas para isso.
Trilhos dos Reis 2023. Cinco atletas RUN 4 FUN nos 47 Km e 8 nos 28 Km. Hugo, João, José, Luiz e Luis. Ana, Cristina, Débora, Francisco, Lara, Luis, Pedro, Sara.
9 horas. O Speaker dá as últimas recomendações e saimos para o corredor da partida. Controle leve do material obrigatório e estamos livres para correr. Nós os 5 partimos cá atrás. A massa compacta lança-se para diante e estica-se pelas ruas de Portalegre.
Nos primeiros kms avançamos juntos. Até apanharmos o primeiro estrangulamento num ponto estreito de mais dificil travessia. Permanecemos imóveis durante cerca de 7 minutos. A fila escoa muito lenta. Aproveito para descansar. Sinto as pernas pesadas. Desde Julho de 2021 que as minhas pernas ainda não voltaram a ser as mesmas. Recuperam com dificuldade das cargas a que as submeto. Sempre recuperei muito bem. Algo mudou ou então é apenas resultado da sobrecarga de treino a que me submeti na primeira metade de 2021. Ou então estou simplesmente mais velho. Custa-me a acreditar que seja isso. Com tempo e determinação isto vai lá. Contra toda a evidência ciêntifica, acredito que o meu destino esteja nas minhas mãos. E sobretudo tenho que perder peso. 10 kgs em excesso não ajudam nada.
Assumo um ritmo conservador. Aponto às barreiras horárias. Tento chegar meia-hora antes de fecharem.
A paisagem é de uma beleza inexcedível. Os regatos e ribeiros estão cheios. Passamos o tempo com os pés dentro de água. Depressa nos habituamos.
Não há subidas ou descidas longas. É antes um parte-pernas sob a forma de um carrosel constante. Vamos paulatinamente acumulando desnível positivo.
Passo nos 31,5 kms com 1 minuto e 38 segundos de folga sobre o tempo de corte (6h30). Mesmo à pele. Nunca até hoje tinha corrido o risco de ser barrado. Há-de existir uma primeira vez, mas hoje ainda não é esse dia.
Daí avanço para os 41km onde terei de passar antes das 8h30 de prova. Aqui consigo passar com 10 minutos de avanço. Aproveito para beber uma cerveja de penalti. Deu-me uma nova vida. A partir dai foi sempre a assapar. Ultrapassei vários atletas, a maior parte dos quais não vinha preparado com frontal (não era material obrigatório). Está a anoitecer e cada vez se vê pior o caminho. Progrido rápido. Em breve chego à meta no mercado. Sou recebido em apoteose pelos queridos companheiros RUN 4 FUN. Receções destas enchem a alma.
Quis o meu destino que a minha linha de vida se cruzasse com este grupo de gente bonita. Sou um afortunado.
A prova correu bem a todos e todos se divertiram.
Que mais se pode querer? Bons amigos, paisagem de encher a alma, gastronomia e atividade física. Com poucos ingredientes se constroi a felicidade. Temos livre escolha sim. A escolha de agarrarmos os amigos e as oportunidades que o destino nos vai colocando no caminho.
Do fim para o princípio
Separados à nascença?
Em 2020 estivemos estes:
Em Maio estaremos de volta, para a 10ª Edição do Ultra Trail de S. Mamede
Em 2012 participei na 1ª edição desta prova. Teve lugar todos os anos exceto em 2020 durante a pandemia.
Fui 11º da classificação geral e 4º do meu escalão M40, com 105 kms percorridos e 3400m D+ (desnível positivo) em 13h03.
Excelente relato desportivo-filosófico, com alto nível artístico, literário e videográfico. Obrigado Luís pela partilha e felicitações aos nossos companheiros que se divertiram bastante, RUN 4 FUN. João Ralha
ResponderEliminarMuito obrigado amigo João. Gosto sempre de te ler e ouvir. Tens sempre uma palavra amiga de encorajamento. Forte abraço
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