101 Km de Ronda
Vou tentar complementar o excelente relato do Marco com a minha própria perspectiva sobre esta magnifica prova.
Bem, como relatar uma aventura destas que é vivida de forma muito pessoal por quem a experiencia?
Comecemos pela parte técnica:
A preparação física, desde que iniciei a prática da corrida e a participação regular em provas, no Outono de 2008, até à ultra de 101 km, foi a que está patente no seguinte gráfico, agregado em períodos de 4 semanas:
O resto é mental, como espero transpareça do seguinte relato.
Vou dividir o relato em 4 troços: o primeiro com aproximadamente 40 km e cada um dos seguintes com cerca de 20 km. Vou chamar-lhes os meus períodos das dores. Dores em: joelho; quadríceps; gémeos; bolhas nos pés.
Não é nada habitual em mim sofrer de angústias antes de uma corrida. Costumo ter uma atitude bastante confiante. Mas desta vez havia algo de diferente. Confesso que pela primeira vez abordei uma prova com bastantes receios.
Três semanas antes da corrida fiz um longão de 65 km, seguido 3 dias depois por outro de 46 km. Os últimos 10 km desse último longão foram extremamente penosos, com uma dor excruciante no joelho esquerdo que não me largou até ao fim. Nos dias seguintes custou-me bastante treinar e comecei a recear que a inflamação nos tendões não fosse passar. Como a nível psicológico me custava ainda mais não treinar, continuei a insistir nos treinos regulares de 12 a 22 km. Contudo, no treino de grupo do domingo anterior à ida para Ronda ainda senti dores fortes no joelho. Decidi então deixar de treinar e iniciar uma "dieta" de anti-inflamatórios 3x ao dia.
A ida para Ronda foi feita no autocarro de “O Mundo da Corrida”, onde tive a felicidade de ficar a conhecer uma série de atletas e respectivos acompanhantes, muitos deles já veteranos destas andanças. A viagem foi uma prova em si, tendo durado 10 horas, apenas suportável dada a excelente companhia em que foi feita, com pessoas interessantes e divertidas. Do nosso grupo Run 4 Fun, foi minha companhia no autocarro o Pedro Prates.
Chegados a Ronda convertemos as inscrições de equipa em inscrições individuais (pois faltava-nos um elemento para termos os 5 necessários) e acomodámo-nos o melhor que pudemos no polidesportivo.
Na manhã seguinte, após o toque de corneta da alvorada e do pequeno-almoço revigorante, dirigimo-nos para o local da partida onde nos encontrámos com o Marco Gouveia e o Luís Boleto.
Às 11h00 é dado o sinal de partida e saímos no meio de uma multidão. Ao fim dos primeiros quilómetros separo-me dos meus colegas. O Prates segue com a equipa “Expresso Lusitano”. O Marco e o Boleto seguem juntos.
Saímos de Ronda e descemos para campo aberto, um grupo compacto de atletas a correr em estradão. Começo-me a adiantar o melhor que consigo, tentando libertar-me desta mole humana.
Os primeiros 34 km são muito rápidos, com poucas subidas. Avanço a um bom ritmo, cerca de 5:35/km. Os abastecimentos são regulares (aproximadamente de 5 em 5 km) e abundantes (devo ter ingerido "quilos" de bananas e várias laranjas ao longo de toda a prova). Apesar disso não me arrependo de vir acompanhado da minha costumeira mochila de hidratação a qual me dá uma sensação muito reconfortante de apoio em caso de necessidade, provida que está de litro e meio de água e alguns géis que trago para o que der e vier.
Continuo a avançar e a deixar atletas para trás. O joelho vai dando sinal de se poder vir a agravar a inflamação e eu espicaçado por esse receio atemorizador avanço cada vez mais depressa, como se fugindo de um enxame de abelhas enraivecidas. O pensamento que me atravessa a mente é que é mais fácil aguentar menos horas de sofrimento mesmo que com maior esforço físico do que uma eternidade de dor.
Felizmente a dor vai-se mantendo - matreira - a um nível controlado, mas pronta a morder a qualquer momento.
Ao km 35 chego a Arriate, pequena povoação onde tem início a primeira verdadeira subida. São 4km com 9% de inclinação. Como ainda me sinto fisicamente bastante fresco, resolvo fazê-la em parte a andar, em parte a correr.
Besteira da grossa! Consigo chegar ao km 40 ainda antes de ter completado 4 horas de prova, mas assim que chego lá acima, desço 100 m e começo a andar em terreno plano é que me consciencializo que os quadricepes estão já muito maltratados, o que nesta fase prematura da prova é muito preocupante. No entanto lá sigo, tentando ignorar esta nova dor, a qual tem a vantagem não despicienda de me fazer esquecer o joelho.
Mantenho um ritmo de 6:20/km durante os 19 km seguintes até chegar à povoação de Setenil ao km 59. Esta povoação é muito interessante, com casas embutidas na rocha. Passamos pela estrada junto a umas explanadas onde a comitiva portuguesa nos espera para nos oferecer o encorajamento muito desejado. São agora 17h da tarde e estou em prova há já 6h. Com o novo alento transmitido pelos aplausos nem me apercebo do abastecimento e sigo encosta acima. A partir daqui resolvo não repetir o erro anterior e subo uma ladeira interminável de quase 10 km em passo de marcha rápida, abrindo excepções para correr apenas quando o terreno é praticamente plano. Vou a um ritmo de 8:00/km. Aqui começo a ser atacado por esticões nos gémeos. Chego a recear que me dê alguma cãibra paralisante que me impeça de prosseguir. Amaldiçoo-me por não ter trazido sal para repor os electrólitos perdidos pela diurese e sudação. Sei que mais adiante, no abastecimento do Quartel da Legião, vai estar à minha espera uma sopa quentinha e muito salgada, mas até lá ainda faltam uns valentes quilómetros onde tudo pode acontecer.
Chegado finalmente ao alto da serra, a 900 m de altitude, tenho a alegria de desfrutar de uma vista desimpedida para Ronda ao fundo e o Quartel no seu sopé.
Mas o alívio é de curta duração. Assim que começo a descer apercebo-me que as pernas já estão muito massacradas e a progressão em descida até ao Quartel não vai ser particularmente rápida. Ainda assim consigo manter um ritmo de cerca de 6:30/km, o que me faz finalmente chegar ao Quartel da Legião, no km 77, às 19h20, após 8h20 de prova. Isso ultrapassa as minhas melhores previsões, o que me permite conceder-me um breve repouso de cerca de 10 minutos para retemperar forças e ingerir a sopa quente, o iogurte e mais uma banana. Neste ponto tinha à minha espera um saco com uma muda de roupa, que se revelou dispensável e por isso pedi para ser enviado directamente para a meta, nos camiões da Legião.
Arranquei do quartel com a perspectiva de ainda ter duas horas diurnas para percorrer os 24 km finais. Pouco depois essa perspectiva optimista começou a revelar-se uma miragem pois dei início à famosa subida do “Purgatório”, com alguns quilómetros que chegam a ter 13% de inclinação. Aqui as bolhas que se tinham avolumado em ambos os pés sobrepuseram-se às restantes dores e pude finalmente esquecer-me que tinha pernas. Chegado à Ermita, no alto, restava descer até ao rio, no km 89, e percorrer junto a ele o único single-track técnico de todo o percurso. Felizmente fi-lo todo ainda durante o dia, o que me permitiu fazer este percurso a uma velocidade razoável sem necessitar de recorrer ao frontal. Só ao km 95, quando se iniciou enfim a última subida para Ronda é que deixei de ter visibilidade e me socorri do frontal. Os últimos 18 km, desde a Ermita até à meta, foram percorridos em 7:30/km, tendo eu sido ultrapassado por vários atletas, mas por mais que eu tentasse as pernas já não respondiam com maior celeridade. A subida final é feita a andar e com vista para a famosa ponte de Ronda. Chegado lá acima resta o quilómetro final e busco em mim as forças restantes para conseguir correr ou até talvez tentar um último sprint final antes de cortar a meta. Chego à meta com os vivas da alegre comitiva portuguesa, e também dos espanhóis, sempre muito carinhosos e expansivos.
Completei os 101,3 km em 11h40m, no lugar 101 da geral (em 1999 finalistas) e 69 do escalão de Veteranos A. Vou jantar com o sentimento da missão cumprida e bem acima das minhas expectativas. Valeu a pena cá vir e foi mais uma experiência digna de contar aos filhos e aos futuros netos.
No dia seguinte de manhã reúno-me com os restantes companheiros da aventura Run 4 Fun e fico extremamente satisfeito por verificar que a prova também correu a seu contento. Com muita determinação, cada um conseguiu os seus objectivos, e apesar do Boleto não ter terminado, a verdade é que quase duplicou a sua anterior distância máxima, completando 77 kms, o que já é um enorme feito.
Uma última palavra para gabar a organização, que na minha humilde opinião esteve impecável. Só isso, juntamente com as amizades criadas, já fez valer a pena cá vir.
Luis. Missão mais que cumprida. Uma verdadeira aventura que realizaram. Como comentei no pst anterior foi uma prestação fabulosa, de toda a equipa. Boa recuperação para todos.
ResponderEliminarOS vossos relatos são impressionantes.
ResponderEliminarDe facto, estas "ultras" são um exercício mais mental que físico...
Verdadeiros heróis, é o que vocês são.
Abraço,
AC
Fantástico relato (o qual só nos faz sentir o "perfume") de uma experiência que julgo verdadeiramente fabulosa.
ResponderEliminarSem dúvida que o Luis é um (ULTRA) CAMPEÃO, pois um feito como este só está ao alcance de um restrito número de eleitos.
UltraAbraço
Impressionante!!! Uma aventura inesquecível para quem a viveu.
ResponderEliminarEsta descrição é uma autêntica aula de quem sofreu esta jornada.
400 km /mês de treinos nos meses anteriores! As sensações, as dores, anseios, prudências,... O grande desgaste físico e psicológico.
E ainda no final, um grande tempo numa prova desta dureza.
Parabéns mais uma vez!
Obrigado Luís e Marco por partilharem connosco as experiências por que passaram.
Luís, na próxima vez que estiveres em Ronda, já fazes isso com uma "perna às costas".
Um Abraço.
Parabéns Luís pela excelente classificação.
ResponderEliminarRelato muito interessante e motivador.
Muitos parabéns. Fantástica descrição e óptimo resultado. És um verdadeiro ULTRA-MARATONISTA.
ResponderEliminarComeço hoje a fisioterapia e depois de ler os Vossos posts ainda tenho mais ganas de recuperar, são experiências para a vida, também quero!!!
ResponderEliminarParabéns Luís, a tua prestação foi notável!
Runbraço
Parabéns Luis!!
ResponderEliminarComo sou verdadeiramente novato nestas andanças, pois nem sequer fiz a minha primeira meia maratona, fuqei contagiado com o relato e com a força psiquica e fisica que é necessária para continuar.
Obrigado pelo exemplo e, em especial, motivação de que é possivel ir mais além!!
Um forte abraço
Parabens Luis, só de ler fico arrepiado mas de contentamento e alegria por vos conhecer.
ResponderEliminarVerdadeiros CAMPEÕES os 4.
Abraços e continuação de uma boa recuperação.
Obrigado pela partilha da experiência.
ResponderEliminarImpressionantes os 101K da Ronda embora os 400Kms mês já para mim são inimagináveis...
Nós sabemos o que somos, mas não o que podemos ser.
Neste caso UltraMaratonistas.
RunAbraços
Luís,
ResponderEliminarExcelente relato, muito enriquecedor e bem feito.
Notável o espírito confiante e o "esquecimento" do sofrimento.
Também o rigor dos dados e da racionalidade ao serviço do objetivo, com um aumento gradual da quilometragem por semana, até chegar a uma média impressionante, de 100 km por semana.
Uma classificação notável e um exemplo que a todos nos honra, por termos o Luís como nosso amigo e companheiro de corridas.
E também, mais uma vez, os parabéns ao Marco, o grande impulsionador desta aventura, ao Pedro Prates e ao Luís Boleto.
E o Nuno Almeida tem toda a razão. Nós pensamos que sabemos do que somos capazes, mas não sabemos até onde podemos chegar, a menos que ..........experimentemos............
Runabraços
Caro Luís,
ResponderEliminarÉ com enorme satisfação que verifico que superaste mais este exigente desafio. O relato extasiante da tua aventura provoca-me um misto de sentimentos: Desejo e dúvida.
Os meus sinceros parabéns pelo teu brilhante desempenho!
Abraço,
Renato Velez
Vídeo da Partida dos 101 km Ronda 2011: www.youtube.com/watch?v=sT3L6gFTaZU
ResponderEliminarR4F aos 2:10-2:14: Luís Ferreira, Pedro Prates, Marco Gouveia, Luís Boleto.
Parabéns Ultra trailers R4F e restantes participantes portugueses neste grande desafio.
RunAbraços.
Parabéns, Luís! Grande prova, uma verdadeira epopeia anímica.
ResponderEliminarGrande prova Luís, mais uma vez parabéns, o teu relato está fantástico.
ResponderEliminarFoi um prazer ter-vos como companheiros de viagem e da grande aventura que foram estes 101 km de Ronda.
Parabéns aos restantes elementos da vossa equipa.
Grande abraço legionário.
Relato impressionante. Só de o ler fiquei cansado. Ao nível das melhores descrições do Chris McDougall! Parabéns Luís, és um verdadeiro campeão!
ResponderEliminarPara ti ultrarunabraços,
Luís mais uma vez os meus parabéns. A tua média por Km foi impressionante para uma prova tão longa.
ResponderEliminarEstás um ultramaratonista de eleição!!
Ab
Zé Carlos Santos
Obrigado a todos (incluindo aqueles a quem a google eliminou os comentários devido a uma manutenção de sistemas mal conduzida) pelas estimulantes palavras de incentivo. O encorajamento deste grupo fantástico tem sido de facto um factor fundamental para a bem sucedida consecussão dos meus objectivos desportivos.
ResponderEliminarQuanto à recuperação, andei 7 dias bastante dorido mas no domingo lá consegui participar nos 10 km da Corrida das Novas Oportunidades. O meu joelho ainda não anda muito "católico" pelo que nos próximos tempos terei que me poupar um pouco, a fim de estar em condições de embarcar em breve noutra destas "aventuras" de fundo.
Fantástico, Luis.
ResponderEliminarGrande Prova e um excelente relato. A "falta de sal" reportou-me à minha falhada experiência nos 100/24 nos arredores de Madrid, em Junho de 2009, que contei no meu bogue http://cidadaodecorrida.blogspot.com/2009/06/100km24h-o-fiasco.html
Senti-me um miúdo, que não sabe bem medir os desafios e que teve de encostar aos 33km(eheheh)esgotadíssimo, como nunca tinha estado numa prova.
Meti-me também na Freita, falhei! Aos 40 já levava 9,20H ,fora do tempo.
Isto das Ultras e dos Trails, tem muito que se lhe diga.Não é para qualquer um. Por isso, maior é a admiração que tenho por todos os "centouneros", ainda para mais, por quem faz a prova na casa das 11h.
Sim senhorf.
Grande Abraço.
Amigo Fernando,
ResponderEliminarMuito obrigado, mais uma vez, pelos comentários muito simpáticos.
Até aqui tenho tido sorte, nas minhas poucas (apenas duas até agora)experiências verdadeiramente "Ultra".
Ainda não passei por nenhuma contingência que me obrigasse a parar, mas é algo que pode acontecer a qualquer um.
Neste momento ainda estou ressentido do joelho que massacrei durante a prova, o que me tem dificultado muito os treinos. Mas com paciência isto volta ao sítio.
A Freita este ano vai ter limites de tempo mais razoáveis do que no ano passado (eu cheguei ao fim in extermis, quando faltavam apenas 13 minutos para completar as 15 horas de tempo limite).
Espero que nos vejamos por lá novamente.
Um grande abraço.