BRAVEHEART 419



Já dizia William Wallace que “todos os homens morrem, mas nem todos os homens realmente vivem”. Se alguma vez a lenda escocesa proferiu tais palavras, nunca saberemos ao certo, mas podemos ouvi-las as vezes que quisermos em “Braveheart”. A longa metragem que conta a história de Wallace e que numa palavra apenas, dá o seu contributo para a crença instalada: os bons são bravos e agem com o coração. Ser racional e calculista é coisa de vilão. Se o meu nome e os meus feitos estão condenados ao anonimato e ao esquecimento como “lágrimas na chuva”, William Wallace é matéria da eternidade. O bilhete para a imortalidade saiu-lhe bem caro, no entanto. Depois de capturado e condenado por alta traição, o herói escocês foi arrastado por cavalos, enforcado e, ainda vivo, castrado, desventrado e decapitado em praça pública. Aparentemente já falecido, o seu corpo foi ainda esquartejado em quatro partes, tendo o coração ido parar a parte incerta. Já a cabeça acabou em exibição pública, depois de banhada em alcatrão e espetada num pau. Antigamente é que era bom, ouve-se muito por aí. Fica a grande questão: devemos confiar assim tanto no nosso coração? Serão aceitáveis as consequências?



Sempre considerei as motivações para correr difíceis de traduzir em palavras. Tal como o ALUT, é algo que se sente, não se explica. Em 2021, depois de oito anos a procurar novas sensações nas corridas e nos trilhos, o meu coração decidiu tornar-se freelancer e bombear ingratidão. Optou por bater ao ritmo que lhe apetecia e não ao que era suposto para o bem da organização. O maldito ainda me levaria até à meta do ALUT desse ano, antes de ser submetido ao corretivo que haveria de o pôr na linha. Daí para a frente, a cabeça agarrou o leme e durante dois anos, convenci-me que pequenas distâncias e sprints chegavam. A minha fome de corrida e as recomendações médicas pareciam coexistir. A realidade? A cabeça pode aceitar mentiras, mas o coração não se deixa enganar assim tão facilmente. Ao pretexto auto-prescrito de que seria possível aumentar carga de treino desde que a intensidade cardíaca fosse baixa, juntou-se a atração do amplo contingente de atletas laranjas inscritos na edição de 2023 do ALUT e o estímulo da inversão do sentido da prova. Estava mordido o isco que levaria o meu nome e o dorsal 419 novamente à lista de participantes. 




No dia 30 de Novembro, na companhia de Teodoro Trindade, Carmen Ferreira, Luiz de Ramos, Marina Marques e José Manso, sempre apoiados pela Guida (mulher do Teodoro), pelo Rui Gonçalves e pela Sofia (namorada do Luiz), arranquei a partir de Alcoutim para a sexta edição do ALUT. 

Não tinha nada que saber: a direito e a descer, era para trotar. A subir, mesmo com inclinação reduzida, era para caminhar. Passada tranquila, mas decidida. Ritmo cardíaco sempre abaixo dos 120. E lá fomos avançando, sem nada a assinalar até à primeira travessia de água, quase a chegar ao abastecimento em Furnazinhas. A partir daqui começou um ALUT dramático, com chuva constante, por vezes muito forte, muitas passagens de água, perfeitas para destruir os pés, temperaturas a baixar com a noite e vento forte de frente. A segunda etapa até Cachopo deixou-nos encharcados, cheios de frio e receosos. A meteorologia deu algumas tréguas entre Cachopo e Barranco do Velho, mas sempre com alguma chuva presente. Mais de metade do desnível positivo da prova estava feito só nas primeiras três etapas. 

Seguimos decididos até Benafim, embora os tempos de corte não permitissem grandes relaxamentos nos abastecimentos. Ainda antes de Benafim damos com o apoio surpresa dos incríveis almadenses laranjas Ana Chocalheiro, João Antunes e Pedro Fonseca. Ficariam connosco até Marmelete, penúltimo abastecimento da prova. Também pelo Barranco ou Benafim, já me falha a memória, juntou-se a nós o Luis Afonso, que nos acompanhou até à meta, indo de abastecimento em abastecimento de bicicleta! E ainda fez uns kms no final. Sempre a olhar para os relógios, fomos até Messines onde decidimos dormir. Apesar da aparente falta de tempo e do enorme desgaste que já se fazia sentir, a verdade é que tínhamos feito metade da prova em trinta horas. Considerando que o tempo limite era setenta e duas até ao fim, estávamos bem. Com este pensamento, a confiança subiu e estava pronto para um merecido sono. 



Regressar ao ALUT não foi uma decisão só emocional. Foi uma decisão criativa na qual o meu cérebro, manipulado pelas emoções cardíacas, inventou um loophole inexistente. O coração, qual sacana sanguinário, conseguira o que queria e estava agora pronto para desferir o golpe de teatro que ironicamente preparara em surdina, sem que alguma vez tivesse deixado escapar o mínimo sinal suspeito. Enquanto estava deitado a tentar dormir no abastecimento de Messines, o desgraçado voltava a revoltar-se, batendo outra vez ao ritmo e à cadência do seu interesse e vontade. Imediatamente senti o que se estava a passar e, acima de tudo, que não era passageiro. Passageiro era eu, a bordo de um corpo controlado por um coração à deriva. Enquanto os meus colegas seguiram para o abastecimento de Silves, eu segui para o hospital de Portimão, trocando tempos de corte por tempos de espera. Depois de uns exames e alguns fármacos, o coração ficou mais ou menos amordaçado e a vida seguiu. Perdoem-me por este exercício dissociativo a roçar o absurdo, mas fiquei a meio da prova para a qual dediquei atenção, tempo, dinheiro e muito treino durante quase seis meses. Foi o meu primeiro DNF oficial e preciso de culpados.  




Tinha perdido a chegada dos companheiros a Silves, mas não voltaria a perdê-los de vista nos restantes abastecimentos, onde os ajudei como pude a cumprir o seu objetivo. Descansaria devidamente quando eles descansassem também. Apesar da brutalidade das condições associadas a uma distância que por vezes parece infinita, os bravos cinco seguiram sem hesitação até à meta. Nem por uma única vez vi algum deles falar em desistência ou a duvidar perante as evidentes dificuldades físicas. Penso que a coesão do grupo foi decisiva. Talvez alguns tivessem chegado mais cedo se não esperassem pelos outros, mas suspeito que não chegariam todos. Wallace não diria melhor do que “sozinhos vamos mais depressa, mas juntos vamos mais longe.” Para acompanhar o grupo nos últimos vinte kms e ajudar a cumprir o tempo limite, ainda apareceram o Pedro Esteves e a Susana Duarte. Luis Matos Ferreira também estaria no fim para celebrar o sucesso dos cinco magníficos. 

Algures perto do fim, alguém resumiu bem o ALUT. O segredo é ter vontade. E esta tem tanto de lógica quanto de emocional. Está tanto na cabeça, quanto no coração. E os nossos laranjas tiveram vontade aos montes, ainda maiores que os da prova, enquanto foram brilhantemente seguidos e apoiados por quem estava no terreno e à distância. Quanto a mim, a vontade sempre me levou longe. Desta vez, metade do ALUT pode ter sido longe demais.







Chegamos à moral da história. A moral vigente diria que devemos ouvir o nosso corpo e que saber parar quando ele assim pede é um mérito. Que tentar fazer uma prova como o ALUT tem tanto valor quanto terminá-lo. Que se trata apenas de uma prova de corrida. Diria também que devemos fazer exames regularmente e dar ouvidos aos nossos médicos. Este é o caminho do sensato e é um caminho válido. E está quase tudo bem. Quase. 

Como é óbvio, a importância de participar numa prova de trezentos kms e sofrer que nem um cão maltratado até à meta, não é comparável com a importância das decisões que William Wallace tomou e que marcaram a história de nações e uma cerimónia de óscares. Arriscar a saúde, e quem sabe, a própria vida, de forma consciente, numa prova de corrida é tolo. Mas sou da opinião que existe qualidade intrínseca na tolice, feita da mesma coragem e convicção capazes de mudar a história da Humanidade. Existe risco? Sim. O ganho pode ser irrelevante? Sem dúvida. Quem segue a cabeça em vez do coração e joga pelo seguro, está errado? Nem pensar. Mas não se esqueçam do que terá dito William Wallace: "todos os homens (e mulheres) morrem, mas nem todos os homens (e mulheres) realmente vivem". 

Comentários

  1. Grande relato Pedro (Riveras; Supertramp; MF....)
    Sem mimimis

    https://www.youtube.com/watch?v=E3-CpzZJl8w

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  2. Messines é o nosso Cabo das Tormentas. Sempre que lá passamos em grupo ele exige “portagem”. Desta vez foste tu o sacrificado, o nosso melhor trunfo.
    Fizeste-nos falta!
    Agora cuida-te.

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