EstrelAçor 2020 - A Aprendizagem



Quando tudo poderia ter corrido mal, mas acabou bem.

A malta laranja apresentou-se em três provas:

- Luís Matos Ferreira, Pedro Ribeiro e Rui Faria nos 180 km

- Carmen Ferreira, Luís Afonso, Marina Marques, Paulo Raposo, Sandra Simões e Teodoro Trindade nos 100 km (a Daniela Pereira viu-se obrigada a não comparecer).

- João Sousa, nos 46 km

A prova de 22 Km, na qual se inscreveram a Ana Melo e o Orlando Ferreira, foi cancelada.


Resumindo a prova em que participei (100 km): os primeiros 50 km são estradões intermináveis, com subidas e descidas muito inclinadas, características do Piódão, seguindo-se a sofrível, muito sofrível, e muito gelada, subida do Alvoco à Torre, e uma descida técnica, em pedras muito escorregadias, pelo Covão do Ferro. 

O troço até Manteigas é feito pelo Vale Glaciar do Zêzere, por um estradão fácil e descendente, e os últimos 20 km correspondem a uma subida permanente, até às Penhas da Saúde. 


E a prova foi resumida porque este texto visa descrever outro aspecto destes eventos: o que pode falhar, por parte da organização e/ou por parte dos atletas. 

Todos sabíamos que o tempo estaria muito frio e chuvoso e que iríamos aos 2000 m de altitude. 

A organização publicou a lista de material obrigatório

1. Telemóvel carregado 
2. Manta térmica 
3. Copo ou similar (a organização não possui copos) 
4. Apito 
5. Máscara 

E publicou, como material recomendado: “Todo o material não obrigatório”

Tout court!

Nas provas como o UTMB, Andorra, Estrela Grande Trail, etc., é material obrigatório, entre outro, calças impermeáveis, calças e camisola que cubram, respectivamente e na totalidade, as pernas e os braços, e dois frontais. 

A organização aconselhou, vivamente, que os atletas carregassem o track no relógio, cujo link enviaram por e--mail (V1-versão 1).

Por razões de segurança, e para evitar a perigosa descida pelo Covão d´Ametade, alteraram esse troço da prova, e publicaram a V2 do track.

E, 24 horas antes da prova, publicaram, a terceira versão (V3), que continha uma alteração no final: em vez de fazermos os últimos 2 km por estrada de alcatrão, continuávamos em trilho, e teríamos acesso a uma vista bonita sobre a Covilhã.

Estas alterações (V2 e V3) não foram publicitadas na página do evento, nem foram enviadas por email. Apenas foram publicadas no Regulamento da prova, sem qualquer alerta adicional.

Assim, os vários atletas em prova tinham uma das três versões e, grande parte dos mesmos, não tinha consciência das alterações ocorridas.

Calhou-me ter a V2 porque já estava na Serra da Estrela, sem qualquer hipótese de descarregar a V3 para o relógio, mas asseguraram-me que se tratava apenas de uma pequena alteração no último km, e que o percurso se encontraria marcado

Realço que, a 24h do inicio da prova, alterou-se o percurso final, por razões de estética, sem que se alertasse os atletas por qualquer meio.

O track V2 foi primordial para fazermos os 99 km iniciais, sem quaisquer problemas de maior.

Quando faltavam 2 km para a meta, vínhamos inseridos num grupo de 6 pessoas (o Teodoro juntou-se-nos no Covão d´Ametade). Nessa altura senti-me agoniada e tive que parar para tentar vomitar, por 1 minuto, o que foi suficiente para nos afastar do grupo do Rui Pinho, tendo ficado eu, a Marina e o Teodoro.

Conseguíamos ver sinalizações, o track ainda estava correcto e avistávamos o grupo da frente mas a visibilidade diminuía cada vez mais, e apesar de irmos a um bom ritmo, perdemo-lo de vista. 

A Marina tinha o V3 no relógio, mas não conseguia fazer zoom, para ver o trilho. O Teodoro tinha o V3 num localizador, mas este não apanhava o satélite. E eu…tinha o V2.

O temporal já tinha começado com toda a pujança, estavam cerca de zero graus, noite cerrada e um vento que nos empurrava o corpo à bruta. As marcações eram muito espaçadas. Segui em frente pelo trilho, até estranhar não ver qualquer marcação e disse-o ao Teodoro e à Marina.

Esta voltou atrás, a tentar ver as bandeiras, e eu liguei para a organização perguntando se estávamos no track. Confirmaram que não, pelo que, deveríamos seguir em frente, para baixo e tornejando à direita, até entrarmos de novo na prova, mas um pouco mais à frente. Assim fizemos, até não haver qualquer caminho mas apenas árvores e tojo cerrado e alto.

Começámos a receber telefonemas da Rute Fernandes, Ana Melo, Carmen Ferreira, Rui Faria e da organização, sugerindo várias alternativas que nos fizeram dar várias voltas, acabando por perder qualquer referência do local de onde tínhamos vindo.
A Marina não perdeu a frieza e procurou o V3 no telemóvel e percebemos que o caminho da prova estava algures, acima de nós, e fizemos várias tentativas para lá chegar.

O Teodoro explorava vários troços que pareciam caminhos mas que desembocavam em locais sem qualquer saída..

Não havia qualquer trilho. Apenas tojo e rochas. E, como estávamos num vale, não havia qualquer luz ou ponto de referência que nos permitisse orientar e concluir para que lado seria a meta. A certa altura a organização perguntou se conseguíamos saber onde estava a Covilhã…zero, não tínhamos qualquer noção

Andámos, às voltas, nesta situação, durante 1h.30, num temporal infernal, ensopados e enregelados, até que decidimos que iríamos subir o vale à bruta, forçando caminho por entre os tojos mas com cuidado para não partir nenhuma perna. Calcávamos o chão, com os bastões numa mão, procurando detectar fendas ou buracos sob a vegetação, enquanto a outra mão segurava a manta térmica (a da Marina rasgou-se ao meio com a força do vento). A cada 5 passos tropeçávamos nas rochas e buracos escondidos e caíamos, mas os tojos amparavam-nos.

Enquanto subíamos vimos um holofote e percebemos que a organização nos tinha encontrado. A GNR também já tinha sido alertada e andava à nossa busca.

Perguntaram-nos se estávamos bem e se íamos de jipe até ao final.

- “Como assim? Queremos acabar!!! Queremos a meta!!!” E lá fomos a correr, sim…a correr desalmadamente (ahahaha) até cruzar a bendita meta, acompanhados pelo dito jipe, pelo carro do Rui e o do Orlando, com buzinadelas e 4 piscas ligados: parecia o Sporting a ganhar o campeonato.



https://youtu.be/nVbqqMc6h3Y  - A chegada à meta "Sai da frente!!! Sai da frente"

A Marina tremia de tal forma gelada que tiveram que segurar-lhe nas mãos, para conseguir beber um chá quente. Arrastaram-na para os balneários onde lhe tiraram a roupa, para conseguir tomar banho. Eu fui para o quarto onde tomei um duche a escaldar a pele, durante 45 minutos. Presumo que o Teodoro também tenha ficado com a pele vermelhinha.

A organização falhou nesta alteração de última hora. E não se trata dos 10 km da Marginal. É uma prova em montanha que se desenrolaria no meio de um temporal.



Mas também falhei. Se falhei. E não há margem para falhas.

A tecnologia existe para nos orientar. Tínhamos que ter o track correcto e em funcionamento.

Não podemos levar os mínimos para a serra, para evitar ter peso na mochila. Usei calças na primeira parte da prova e troquei para saia, na base de vida (Alvoco), com medo do meu usual calor e porque, até então, tinha suado muito nas subidas. Mas a seguir ao Alvoço vinha a subida para os 2000 m da Torre e já tinha começado o mau tempo.

Felizmente coloquei umas calças impermeáveis na mochila. Mas nunca as tinha experimentado no terreno e, não sei se engordei (mE&#@!!!!) ou se a saia se enrolou de forma estranha, mas a verdade é que não conseguia alçar a perna, para subir as rochas e tive que as puxar até ao meio do rabiosque, para poder movimentar as pernas.

Dois dias antes, ainda em casa, o fecho do meu impermeável indiciou ter problemas. Na subida à Torre o problema concretizou-se: o fecho deixou de…fechar. Temperatura de zero graus, chuva e vento exigem um impermeável estanque, que proteja o tronco, daqueles factores ao mesmo tempo que mantém o calor produzido pelo corpo.


Em Manteigas pedi à Isabel 7 alfinetes de dama e apertei o fecho espaçadamente. Coloquei uma camisola térmica por cima, para tentar isolar o corpo do frio, ganhando o prémio da "Fatiota Mais Sexy e Eficaz no Trilho" (um rude golpe no ego de uma trailer muito vaidosa).

A falha: sabendo que o impermeável não estava 100% bom, deveria ter levado um corta vento extra, como o Teodoro fez.

Não levei nenhum gorro, apenas um buff. E, apesar de nessa manhã ter aprendido uma técnica de uso incrivelmente eficiente, não foi suficiente para aquele contexto.

Tinha umas luvas grossas no saco da base de vida mas optei por não levá-las, porque seria mais peso na mochila.

E apenas tinha vestido uma tshirt térmica de manga curta, uma tshirt laranja Run 4 Fun e uns manguitos.

Outra falha: não perder o foco nas marcações. Quando estas não aparecem é preferível voltar atrás imediatamente, mesmo que se perca tempo. O cansaço e o frio, e a ânsia de estar quase na meta, fez-me desleixar esse ponto e avancei, avancei, mesmo não vendo marcações há já alguns metros. E arrastei a Marina e o Teodoro atrás de mim.

Temos de ter permanente consciência dos perigos que a Serra da Estrela esconde evitando qualquer distração. A serra é bruta, tem buracos e surpresas, escondidos sob o nevoeiro e a chuva, e menos perceptíveis pelo cansaço provocado pelos 100 km escondidas e por uma noite em claro.

Mas nada aconteceu! Chegámos à meta e testemunhámos, mais uma vez, a amizade, carinho, apoio e calor dos nossos amigos. A Rute Fernandes ia tendo uma apoplexia em Lisboa. E informava a Margarida Marques Pereira, via whatsapp, porque esta estava no hotel sem rede telefónica. O Orlando era a eficiência personificada e dava instruções práticas para nos aquecermos. O Rui, depois de a prova dos 180 km ter sido cancelada, e de ter feito 140 km, já andava pelos trilhos, com o carro, a fazer sinal de luzes, tentando orientar-nos, desesperado porque eu já não tinha mãos, nem capacidade, para atender os telefonemas.

E, no final do banho, do soninho quentinho, de um almoço farto, à Run 4 Fun, a verdade é que…CATANO!!!! JÁ CÁ CANTA MAIS UMA DE 100 KM, COM 5286 de D+, no meio de um temporal. Foi a quarta mas esta teve um sabor especial.



Na prova dos 180 km já não se permitiu que os atletas subissem à Torre, por força das condições atmosféricas:  a GNR já tinha resgatado 5 atletas em hipotermia, nessa mesma subida.

P.S.- A Marina foi uma companheirona de prova. As Mighty entrosam-se e alentam-se.Diz que é o Universo. A Amizade também funciona, digo eu. Principalmente quando são duas Marinas. O Teodoro, idem, desde o Covão d´Ametade. Afinal, é o Nosso Senhor ALUT.





E o Rui, o Pedro e o Luís são os meus heróis.

Só foi pena aquela cena final ter ficado em suspenso…até já tínhamos isqueiro


Comentários

  1. 1. sim, engordaste ;-)
    2. saias estão na lista de material proibido que nem se publica porque toda a gente sábia sabe isso...
    3. que saudades de tudo e de todos <3 <3 <3

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  2. Estava para vos esganar, não me atendiam o telefone, e eu a ver-vos às voltas tipo malucos....
    a pessoa a querer ajudar, preocupada a kms de distância.
    Se eu estivesse na serra tinha ido serra a dentro buscar-vos pelas orelhas ����

    Grandes corajosos!! Mais uma feita e venha o pódio!

    Proud of you.

    Ps: as 2 Mighty podiam dividir os kms com a Mighty q ficou no quentinho ... eheheh

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  3. Excelente ideia de te focares no que deve ser feito. Um texto pedagógico a ser relembrado, sempre. Parabéns por mais uma grande aventura, com final feliz. Bjs e runabraços

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  4. Ana Groznik já confirmei...as calças estavam torcidas, por cima dos calções da saia. Estou gorda mas não tanto ahahaha. E sim, tens razão, qualquer pessoa sábia sabe que não se deveria usar saia. Mas...mas...a pessoa gosta de chafurdar na lama mas também é muito vaidosa e pode-se ficar em hipotermia mas andar mal vestida é que não !!!! Beijos!!! Saudades tuas!!!

    Rute Fernandes obrigada pela tua preocupação à distância. Nem sei como não vestiste a capa de super-mulher para resolver problemas...

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  5. Muito bom Sandra!! Uma perspetiva útil acerca dos desafios da montanha. Com a montanha não se brinca (organizadores, atletas...). Felizmente tudo acabou bem. Bom texto! 🙏👌🍊👊 E muitos parabéns pela 3ª 100 kms da época! É obra... 👏💪

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  6. Grande relato e pedagógico Sandra. Pensei que já não fazias asneiras destas, com toda a tua experiência. Desculpa só agora escrever um comentário mas não vinha ao blog há uns anos...my fault! E Ana Grosnik que prazer em "ver-te" e que saudades!!! Quando o COVID passar temos que te ir ver. Beijinhos a todos e parabéns a todos.

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