GR11 - Trilho dos Pescadores
“Success is not final, failure is not fatal, it is the courage to continue that counts.”
- Winston Churchill
“Because in the end, you won’t remember the times you spent in the
office or mowing your lawn. Climb that goddamn mountain.”
– Jack Kerouac
O GR11-E9 é um dos Trilhos Europeus de Grande Rota, que atravessa a Europa desde o Cabo de São Vicente, em Portugal até São Petersburgo, na Rússia, ao longo do litoral ocidental da Europa.
Um dos seus troços mais cénicos é o denominado Trilho dos Pescadores, que tem inicio a sul de Sines, na praia de St. Torpes, e vai até ao Cabo de S. Vicente, continuando até Lagos.
Mais informação neste link: Rota Vicentina.
Se há coisa que o avançar da idade não me tem trazido é mais juizo.
Serenidade sim, juizo não.
Pelo menos na aceção clássica de juizo ser equivalente a ser mais conservador e correr menos riscos.
Lamento que a sociedade contemporânea cada vez mais se procure refugiar num ambiente seguro e esterelizado, sem lugar para o improviso e a aventura. O risco é precisamente aquilo que faz com que a vida valha a pena ser vivida. A incerteza do próximo passo. O desconhecimento do que nos espera. As empreitadas de que ignoramos o desfecho. Os objetivos a longo termo, sem garantias de sucesso.
Hoje em dia tudo é imediato, tudo é mediado, tudo é regulado e regulamentado. Na vida pessoal e profissional, escolhemos objetivos de curto prazo, que possam ser medidos e pesados rapidamente. Sobra muito pouco para a imaginação e para a tomada de risco.
Quando me surgiu a ideia de aproveitar os feriados de Junho para empreender esta viagem, e a partilhei com amigos, logo me perguntaram: mas vais sozinho? E se te acontece alguma coisa pelo caminho? Quem te socorre?
Há 30 anos atrás, mal acabado de fazer vinte anos, no início da decada de 90 do século passado, nunca hesitei em me lançar em aventuras bem mais arriscadas. Nessa altura não tinha telemóvel, nem GPS, nem APPs para me indicar o caminho, nem sequer cartão de débito.
Naqueles saudosos verões intermináveis, pegava na moxila, e metia-me à estrada. À boleia, a pé, por vezes de comboio ou autocarro, tudo o que me permitisse deslocar-me pelo mundo.
Assim, decidida a aventura, não poderia existir lugar para a hesitação.
Desta feita, algumas décadas passadas, resolvi meter-me a caminho em mais uma aventura a solo.
Decidi começar a aventura no domingo dia 7 de Junho. Assim, acordei cedo e preparei a mochila com tudo o que iria necessitar. Procurei levar apenas equipamento feito com material leve, que quando se percorre longas extensões, o que se carrega às costas é determinante para a boa progressão no terreno.
O item mais volumoso era a tenda para uma pessoa. Uma obra de engenharia com apenas 1,3 kg de peso. Depois o saco cama, para 15ºC. De seguida um casaco um pouco mais quente para qualquer eventualidade.
O restante foi o habitual: o mínimo de roupa possível, separada em diferentes sacos. Um impermeável levezinho, uma segunda muda de roupa para trocar no fim da viagem. Telemóvel, power-bank e cabos para o relógio e telefone. Uma bolsinha com material de primeiros socorros, para tratar bolhas ou uma entorse por exemplo.
Dois recipientes de meio litro cada para água. Bastões para o caminho, que a mim ajudam-me sempre a dsitribuir o peso do corpo pelos 4 membros.
E pronto: já com água atestada a mochila ficou-se pelos 10 kg, que é o meu limite para uma aventura destas. Na realidade julgo que poderia ter poupado uns 2 ou 3 kg se não levasse algum material extra para a eventualidade de apanhar umas noites frias.
Meio-dia de domingo e está tudo pronto para a partida. Saio para apanhar o comboio para Alcantra-Mar.
Comboio da Fertagus em Campolide: uns 45 minutos até Setúbal.
Daí para o porto, apanhar o Catamaran para Troia. 16h parte.
16h20: Troia. Início da primeira etapa.
Caminho pela praia. Paisagem lindíssima. Está nublado mas não em demasia. Cerca de 24ºC, a temperatura certa para a caminhada. Vou descalço pela água. Sei que isso me pode vir a trazer problemas nos pés, pela conjugação da abrasão da areia e a humidade. Mas não resisto. Sabe tão bem que não consigo evitar.
Ando cerca de 18 kms até à praia de Comporta. Está a entardecer. Não
posso continuar pela praia pois tenho que comer qualquer coisa e
arranjar água. Vou para o interior e chego a Comporta. Entro no único
café que está aberto e pergunto o que têm. Só têm cerveja e uns pasteis
vegetarianos. Parece-me bem. Fico na conversa com a moça que atende.
Pergunta-me para onde vou. Respondo que para Melides (mais 30 kms). A
reação dela é característica: "para tão longe?!" - "não pode ir sem
comida!". E embrulha e oferece-me os dois pasteis que restavam. É por
estas coisas que eu adoro a aventura e o improviso: tudo pode acontecer e
as pessoas costumam mostrar a sua melhor face a um viajante expontaneo.
Viajar sozinho aumenta drasticamente a probabilidade de ter encontros significativos.
Continuo pela estrada. Este é dos piores percursos de toda a aventura. É de noite e os carros passam velozes. Tenho que ir sempre com cuidado e com o frontal ligado para que me vejam.
Para mais, as bolhas fazem-se sentir nos meus pés. A areia e a água do mar deixaram as suas consequências. Cada passo é como pisar vidro. Mas há-que seguir em frente. Isto há-de passar.
As horas passam e o cansaço acumula-se. Cerca das 2 da manhã não aguento mais prosseguir. Já passei Melides. 50 kms estão feitos. Encontro um local recatado, debaixo de um pinheiro e estendo o saco-cama.
Durmo cerca de 3 horas até que sou acordado por uma algazarra da passarada na copa da árvore, por cima de mim. Parecem gralhas pelos gritos aflitivos que lançam.
Levanto-me, arrumo a mochila e lanço-me à estrada. São 6h da manhã. Tenho muito tempo para chegar a Porto Covo.
São mais 30 km sem história até à praia de St. Torpes, onde tem início o
trilho dos pescadores. Está imenso calor. Vou reabastecendo de água nos
cafés. As fontes das localidades estão todas fechadas, mercê do
Covid-19.
A necessidade de usar máscara dentro dos estabelecimentos dá um toque surreal à viagem.
Pelas 12 horas chego à praia. Paro para apreciar a tosta que melhor me soube em toda a minha vida, e beber duas médias geladas, capazes de reanimar uma múmia.
Mais 10 kms e chego a Porto Covo. Estou verdadeiramente exausto! Foram 100 kms em menos de 24 horas. Necessito repousar em algum lado. Os meus pezinhos muito massacrados gritam por piedade!
Decido procurar lugar no parque de campismo. Por 10 euros arranja-se um espacinho para uma tenda.
Monto a tenda com alguma dificuldade e lentidão. Ainda está imenso calor mas pelo menos está vento, o que refresca um pouco. Montada a tenda, dirijo-me para o banho. Banho tomado, visto a única t-shirt lavada. e deito-me. Devo ter adormecido pelas 20h. O que é certo é que só acordo no dia seguinte, doze horas depois. Estava mesmo de todo.
Trato as bolhas, faço a higiene matinal, demonto a tenda e lá vou eu, de novo a caminho. Desta feita, finalmente no belissimo Trilho dos Pescadores.
Próxima etapa: Porto Covo - Vila Nova de Milfontes
Uma primeira passagem pela Ilha do Pessegueiro, através da praia.
Muito percurso em cima da areia, sobre as falésias, ocasionalmente pelas praias. Não é fácil progredir mas o terreno é fantástico, dos mais bonitos que conheço.
Passo pela praia do Malhão, soberba.
Perguntam-me com frequência em que penso ao longo das longas horas de caminho: não penso em nada de especial. Na verdade não necessito pensar. Contemplo a paisagem, ouço o coração a bater, vejo o azul do céu a unir-se ao azul do mar. É também isso que procuro numa viagem destas. A ausência de pensamento. Busco o sentir apenas. Pensamos demais nas nossas sociedade cheias de escolhas e constantes decisões menores ou maiores. No caminho é preciso decidir muito pouco. Coloca-se um pé à frente do outro. Decide-se quando parar para comer ou descansar e pouco mais. A jornada é simples e contemplativa.
Chegado a Vila Nova de Milfontes, após 20 kms de caminho, permito-me uma rara ocasião em que almoço uma refeição completa. Já me fazia falta.
Agora há que contornar o rio e seguir para a próxima etapa, a caminho de Almograve. Mais 17 kms de sublime beleza.
Chegado a Alvograve, paro na primeira tasca que encontro para jantar uma excelente sardinhada.
Pergunto ao funcionário onde se pode dormir. Ele diz-me para perguntar na churrasqueira que têm pensão. E assim faço. Acabo por contratar um quarto para uma noite, por uns módicos 25 paus, com um fulano que estava lá sentado a beber uma cerveja.
Novamente durmo bem e acordo repousado. O objetivo de hoje é chegar a Odeceixe, onde tenho casa de amigo de amigo. Lá está: assim que soube que eu ia levar a cabo este passeio, o meu amigo Luís Afonso contactou logo amigos para me arranjarem poiso seguro pelo caminho. Viajar para mim tem sido sempre depender da simpatia de amigos ou estranhos. Por vezes uma mistura de ambos.
A paisagem agora modificou-se um pouco: tem menos praias e a areia das falésias é cor-de-laranja graças ao seu conteúdo ferroso. Mas é de uma beleza inigualável. Talvez mesmo a parte mais bonita do percurso até agora.
Sem parar na Zambujeira, fui sempre seguindo para sul. Sabia que tinha uma etapa de cerca de 40 kms para fazer e não queria chegar depois do anoitecer.
Vou deixar as fotografias falarem por mim. Só quem lá está é que sabe.
Praia da Amália.
Chegado à ponta branca, com vista para a praia de Odeceixe, basta caminhar um par de kms junto ao rio para chegar à casa dos meus amigos. E assim foi. Cheguei antes de tempo pois os anfitriões ainda não estavam. Decidi deixar a mochila e caminhar até à Vila para jantar. Odeceixe é uma vila muito pitoresca. Mais uma vez, deliciei-me com uma refeição de sardinhas.
Voltei para a casa e aguardei calmamente pelos meus novos amigos, sentado no alpendre, face a uma vista magnífica!
O convívio com os mui hospitaleiros anfitriões foi muitíssimo agradável. É muito bom conhecer gente nova e desempoeirada.
Dormi que nem um justo e no dia seguinte meti-me novamente a caminho, desta feita na direção de Aljezur. Desta vez optei por deixar o Trilho dos Pescadores e tomar a Rota Histórica. Tinha curiosidade em percorrer um pouco dessa alternativa. É diferente. Já não vai pelo litoral mas sim pelo interior. Até Aljezur é relativamente plano e sem grande história. No entanto, após Aljezur torna-se mais interessante, com orografia mais variada. E é ladeado por muita vegetação autoctone, mediterrânica, com relativamente menos pinheiros e eucaliptos.
Finalmente cumpro algum desnível no terreno.
Ao fim da tarde chego à Arrifana. Paro para comer e beber qualquer coisa na Pousada da Juventude. Sinto a tentação de pernoitar aqui, mas a vontade de chegar ao Cabo de S. Vicente o mais tardar na sexta-feira dia 12 é mais forte.
Continuo na direção da Carrapateira. Está a entardecer e ainda tenho mais 25 kms até lá. Sei que irei caminhar de noite.
Envergo toda a roupa quente que tenho e sigo. Já depois de anoitecer caem aguaceiros fortes. Felizmente levei tanto casaco como calças impermeáveis. Estou preparado para tudo.
Ao fim de 5 horas de caminho, chego à Carrapateira. É de noite. Hesito entre seguir pelo Trilho dos Pescadores, o que encurtaria caminho, pois seriam apenas 15 kms até Vila do Bispo, ou seguir pelo Trilho Histórico, o que acrescenta pelo menos mais 6 km ao caminho. Já passa da meia noite, o mais seguro será continuar pelo interior. E assim faço.
Vou passando as pequenas povoações no percurso. Até que chego a um single-track que sobe a encosta. A meio da subida encontro o spot ideal para descansar um pouco. Novamente debaixo de um pinheiro à beira do caminho.
Um decanso breve de 4 horas, interrompido por uns chuviscos no rosto e alguns mosquitos insistentes.
Foi uma longa etapa de 70 kms, mas agora encontro-me próximo de Vila de Bispo, a apenas 15 kms. É sexta-feira e preparo-me para chegar hoje ao meu destino.
A caminho!
Após 3 horas, chego a Vila do Bispo.
Novamente a refeição do costume:
E o Cabo de S. Vicente a apenas 14 kms. Alguns kms volvidos, surge-me a opção de continuar pelo GR11 ou seguir pelo Trilho dos Pescadores. Decido terminar como comecei: junto ao mar.
Que enorme alegria!!! Às 14 de sexta-feira dia 12 de Junho chegei ao Cabo! 5 dias e 270 kms depois de ter partido de Troia.
Aproveito o momento e a minha conquista. Mas na verdade o que me soube mesmo bem não foi a vitória mas sim a viagem. Enquanto estiver vivo, espero poder continuar a aventurar-me pelo mundo. É para mim condição necessária para que a vida valha a pena.
Agora resta uma pequena caminhada de 7 kms até Sagres onde decido pernoitar numa pensão para descansar da jornada.
Novo jantar de sardinhas. Sabem-me sempre bem.
No sábado o meu amigo Sérgio vem-me buscar de carro. Mergulhamos nas águas frescas da praia da Mareta de depois vamos até Lagos, onde sou muitissimo bem acolhido pelos pais do Sérgio e por ele próprio, como sempre.
E termino com um fim-de-semana em beleza, na companhia de gente boa. O que se pode querer mais?
Talvez apenas que isto se pudesse prolongar no tempo. Vive-se mais numa semana assim, do que em meses de rame-rame diário.
Retorno a Lisboa de Camioneta da Rede Expressos.
Para terminar, eis aqui um link para a aventura de 2017 na Via Algarviana.
E o vídeo da aventura:
Extraordinário. Belo relato de uma grande aventura ao alcance de poucos. Obrigado Luís, pela partilha. Grande abraço
ResponderEliminarQue inspiração. Muito, muito bom. Muitos parabéns e obrigado pela partilha!
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