Ultra Trilhos Rocha da Pena (UTRP#2019)


A Rocha da Pena é um maciço calcário tabular com cerca de 2 km de comprimento e 455 m de largura máxima que se desenvolve a uma altitude de 480 m, destacando-se na paisagem do barrocal algarvio entre Benafim e Salir (concelho de Loulé). Este local sempre esteve no meu imaginário desde a infância devido a lendas e histórias de aventuras relatadas pelo meu irmão mais velho. Está repleto de grutas (do tipo algar), fendas e poços resultantes de processos erosivos diferenciais, sendo um local privilegiado para actividades radicais de contacto com a natureza. Nunca lá tinha estado mas sempre que passava pela N124 junto a Salir e avistava aquela massa rochosa, pensava que um dia teria de encontrar forma de a desfrutar de perto.

Fig 1 – Vista parcial da Rocha da Pena (Serra do Caldeirão)

Esse dia chegou em 2019 com a participação no Ultra-Trilhos Rocha da Pena (UTRP). Neste ano a Algarve Trail Running (ATR) organizou uma edição especial do UTRP: by night. Era a minha oportunidade. Não hesitei, fiz logo a inscrição, em meados de abril, e depois só tive de aguardar pelo dia 10 de agosto.

Fig 2 – Edição especial do UTRP: by night (2019)


No início de agosto entrei de férias e como é hábito fui para Portimão. A prática da corrida também costuma ir de férias, nesta altura do ano gosto de privilegiar actividades calóricas como comer, beber e repousar. Mas em 2019 quis treinar, precisava treinar até ao UTRP. Por um acaso descobri que em Portimão também se corre em grupo, e de que maneira. Fiz-me convidado e participei numa “slow edition” do #quartasacorrer, orientada pelo Mário Rijo, um excelente atleta que também iria participar no UTRP. Se forem a Portimão e precisarem de companhia para um treino à quarta-feira ao final da tarde contactem o Mário. Ele e a malta que treina com ele são 5 estrelas, muito simpáticos e sempre bem dispostos, não se irão arrepender. Mas não pensem que vão em passeio, o treino é vivaço mesmo quando o anunciam de soft. É marketing, eles começam a 6 min/km e terminam bem abaixo dos 5 min/km, só porque é soft (hehe).


Fig 3 - Treino do #quartasacorrer em Portimão (#aculpaedomario)

O UTRP (www.utrp.pt) vai na sua sexta edição, começou em 2014, e assume-se como sendo “o trail mais quente do ano”. No entanto, o calor não é a única dificuldade que temos de superar nesta prova. A combinação de várias características tais como a longa distância (50 a 60 km dependendo da edição da prova), a temperatura elevada (podendo rondar os 50ºC), a baixa humidade (inferior a 40%), o terreno irregular (muita terra e pedra soltas), o desnível significativo (superior a D-/D+ 3 km) e a elevada inclinação das subidas e descidas (algumas delas muito superiores a 30%), entre outras, fazem desta prova uma das mais desafiantes para a distância. E é exactamente esse desafio que me dá a motivação extra que necessito.


Fig 4 - Percurso e características do UTRP#2019


No dia da prova cheguei ao Complexo Desportivo de Salir um pouco antes das 17 horas. O ambiente estava animado, muita cara conhecida, cumprimentos, dois dedos de conversa, umas fotos, uns até já, dorsal levantado, votos de boa prova, etc. Entretanto chega o Francisco Afonso que também iria participar no trail (TCRP). Cumprimento, piadola, dorsal, vamos ao bar, cafezinho e água, converseta, mais cumprimentos, …, faz-se tarde, volto ao carro para equipar. No caminho até ao carro decido, não levo bastões (erro nº 1), que se lixe, mas também não levo a GoPro (erro nº2), assim como assim só vou ter 2 horas e picos com luz, não vale a pena. Durante toda a prova arrependi-me destas duas decisões, teria largamente compensado levar os bastões e a máquina. No carro verifico o material, manta térmica, frontal e pilhas, telemóvel, água (1L), buff, agasalho (à noite o barrocal arrefece muito), biofrutal (1x), ovo cozido (1x), queijo (2x), amêndoas (3x). Tudo conferido, perfeito. De volta ao local da partida já lá estavam o Jorge e a Elsa que simpaticamente vieram desejar-me “boa viagem”. Estas coisas não têm preço, obrigado. Mais dois dedos de conversa, a ansiedade aumenta, umas fotos, um snack, as despedidas e a entrada no controlo zero para a partida. Mais uns cumprimentos, conversa com um dos vassouras (o Ricardo Roncon) e votos de até nunca, entretanto eram 18h00 e foi dada a partida.

O dia esteve quente, às 18h a temperatura ainda era superior a 30ºC, mas havia vento o que amenizava a sensação de calor. O troço inicial da prova é sempre a subir mas não apresenta dificuldades. Seguimos em direcção ao topo da Rocha da Pena, algumas subidas mais inclinadas foram feitas a andar, era preciso poupar forças. O primeiro abastecimento (PA1, 6 km) corresponde à entrada na Rocha da Pena e ao sector mais bonito da prova. O planalto tem uma vista fantástica, estava um final de dia deslumbrante de cores intensas. Ia encantado com a paisagem, com o trilho, com a vegetação, que ambiente magnífico. Se tivesse levado a máquina fotográfica teria conseguido excelentes fotos para vos mostrar e mais tarde recordar.


Tinha fantasiado concluir a prova em 10 horas e por esta altura parecia-me possível. As verdadeiras dificuldades começaram logo após o segundo abastecimento (PA2, 16 km) com uma descida interminável num trilho com terra solta. Comecei a ser ultrapassado pelos primeiros atletas do TLRP o que me obrigou a várias paragens, algumas delas em condições dificeis. Entretanto o pôr-do-sol chegava, a visibilidade diminuía, as forças também e as “paredes” cresciam a olhos vistos. De tal forma que ao chegar ao terceiro abastecimento (PA3, 23 km) o objectivo das 10 horas estava definitivamente abandonado. Nesta altura estava a pouco menos de metade da prova, já me sentia cansado e ainda não tinha escalado 1000 m D+ dos mais de 3000 m anunciados. Não era um bom presságio pois as dificuldades estavam ainda pela frente.


Fig 5 – Perfil altimétrico do UTRP.
(Coloração azul escura indica inclinações superiores a 30%).


O perfil altimétrico em “dente de serra” é demolidor, para ser superado requer treino, muito treino de força. Não é suficiente “saber correr”, é necessário meter desnível no treino ou realizar treinos com efeitos equivalentes. Era anunciado que nesta prova ou estamos a subir ou então a descer. Na verdade não é exactamente assim mas foi essa a impressão que fiquei enquanto lá estava. Não são subidas e descidas quaisquer, ao pé de muitas delas a “subida da morte é para meninos”. Várias possuem inclinações superiores a 30%, temos de as escalar, e o terreno é difícil, com terra solta e pedras onde é muito fácil escorregar. As descidas eram ainda piores que as subidas, exigiam esforço de tensão muscular e rapidez de movimentos. A partir de certa altura começou a custar mais descer do que subir. Nas subidas podíamos parar e controlar a cadência para ganhar fôlego mas nas descidas isso não era possível.


Foi um mau período. O sector mais exigente é provavelmente entre o PA3 e o PA4 (31 km). Escalar os serros para os voltar a descer a pique é desgastante e o forte vento que se sentia nas encostas da serra durante toda a noite não ajudava. O PA3 dista do PA4 cerca de 8 km com D+ 670 m e D- 630 m. Aqui encontrei vários atletas anunciando a sua desistência no próximo abastecimento. Cheguei ao PA4 estafado e com o estômago às voltas, o objectivo era já o de tentar terminar antes das 12 horas de prova. Comi uma sopa quente, bebi muita água com gás e comi uns biscoitos, a indisposição acalmou, ganhei ânimo e arranquei. Era preciso gerir o esforço, foi o que fiz. Até ao PA5 (40 km) segui em ritmo calmo e procurei ir sempre acompanhado sem nunca forçar o andamento. Mas sentia falta de conseguir correr livremente. Era impossível, quando se subia era preciso escalar e quando se descia tínhamos de ir em contenção pela inclinação, pela natureza escorregadia do piso, pela vegetação ou mesmo porque o trilho estava repleto de pedras. Alguns troços são feitos ao longo do leito seco de ribeiras (ribeira da salgada), fizeram-me lembrar o trail de Penaçova, mas sem água. Em certas zonas o percurso parecia desenhado em terreno virgem, não havia trilho, e quando se podia imaginar o trilho a vegetação era de tal forma agressiva que impedia a corrida sem o risco de acidente. Tentava fazer contas. Eram 4h00 da manhã, faltavam 2 horas para o tempo limite da prova. Eu tinha demorado 2h30 a percorrer os duros 9 km entre o PA5 e o PA6 (49 km). Como diziam no abastecimento, ainda faltavam outros 9 km até à meta e tinha somente 2 horas para os percorrer. Não conseguiria manter o ritmo anterior até ao final e mesmo esse não era suficiente para terminar dentro do tempo limite. Para mais ainda teria de subir à Cruz Alta (435 m) antes de iniciar a descida até à meta. Comecei a duvidar que conseguisse terminar a prova dentro do tempo limite das 12 horas.


Fig 6 – Durante o UTRP (foto de Mário Rijo)


Respirei fundo, e saí do PA6 determinado a manter um ritmo regular que permitisse cumprir o objectivo das 12 horas. Assim fiz, subi sem forçar e aproveitei as descidas para ganhar avanço. Felizmente os trilhos nesta parte final não eram tão agressivos como anteriormente. Eram mais largos e limpos, havia estradões de terra batida e as inclinações não eram tão acentuadas. Mas nem tudo correu bem, por três vezes me enganei no caminho e tive de voltar para trás. Foram três grandessíssimos rombos no ânimo. Só quando avistei a zona da meta é que descansei, iria conseguir. Caramba, estava muito cansado mas muito mais satisfeito por ser um finisher da Rocha da Pena.


Terminei às 5h35 am, com 11h35 de prova, na 93 posição de entre 102, registando 58.5 km percorridos. Estou orgulhoso :-)


Ganhei igualmente um ainda maior respeito por todos os que se atrevem a participar o UTRP. A maior distância, sendo a mais exigente, não está ao alcance da maioria mas existem duas outras distâncias, o TLRP de 25 km e o TCRP de 16 km. Vale a pena experimentar, ganharão um monumental empeno, uma experiência de superação única, e terão o resto das férias para bazofiar e recuperar. Arrisquem.


Comentários

  1. Excelente relato. Inclinação de 30% é loucura. Obrigado Teodoro pela partilha e parabéns por teres conseguido concluir uma prova tão difícil. Runabraço

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  2. Parabéns Campeão, uma grande jornada. És um exemplo. Também estou orgulhoso, boas férias, Abraço

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  3. Parabéns grande Teodoro,
    Nunca falhas independentemente da dificuldade e do tamanho do desafio. És admirável!
    Beijinhos

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  4. Fantástica aventura, obrigado por partilhares e parabéns pela concretização.

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  5. Gostei imenso de ler o teu relato. Sofri contigo as dificuldades e os momentos de alegria e "superação". Parabéns!!! (obrigada pela partilha!) Beijinhos

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  6. Excelente relato daquele empeno monumental Teodoro. Muito obrigado pela parte que me tocou relativamente aos treinos fofinhos nas #quartasacorrer.
    Esperamos pela tua companhia sempre que possivel.
    Grande abraço

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