O MIUT
Os pensamentos geram sentimentos. E os sentimentos geram comportamentos.
Mais ao menos ao km 65/66, sentado num tronco na subida para o Pico Ruivo, o terceiro km vertical, não me saía da cabeça o pensamento de desistir. Tinha chegado até ali praticamente sozinho. Tinha a companhia da Sandra mas sabia que ia perdê-la em breve. Não sabia se o Rui, o Paulo e Gonçalo iam passar do Curral das Freiras. Esperavam-me 50 kms e umas boas 12 horas a sós, na sua maioria à noite, à beira de alguns precipícios sem proteção. O meu joelho esquerdo estava prestes a denunciar-me por violência doméstica, entre outras partes do corpo. Estava decidido. Mas foi então que surgiram outros pensamentos. De repente, pensei como participar no MIUT e estar fora de casa 6 dias tinha causado conflitos em casa. Pensei na pequena Beatriz a chorar compulsivamente no aeroporto enquanto eu me despedia dela. Lembrei-me de como tinha dito tantas vezes aos meus nervosos companheiros “está feita” ainda antes de começar. De como tinha prometido acabar, “nem que fosse de rastos” e como só os cortes horários me poderiam impedir. Na próxima vez que estivesse com estas pessoas, o que teria para lhes dizer?
Se tivesse que resumir o MIUT numa palavra, ela seria drama. Tudo é dramático nesta prova. Quando estamos a baixa altitude, somos esmagados por arranha-céus de pedra que desejamos não ter que subir. Mas temos. Quando estamos lá em cima, vemos o próximo vale bem lá no fundo e não imaginamos como se desce para lá. Mas descemos. As subidas são inclinadas e longas. Quando acaba uma, começa outra pior. Todos falam dos 3 kms verticais, mas há mais 3 “subidinhas” de 1/2 km vertical cada. As descidas são íngremes e intermináveis. Trava-se a velocidade, acelera-se a destruição dos joelhos. O caminho fácil nunca é opção, mas a verdade é que não vi quase nenhum. Ora faz muito frio, ora faz muito calor, um constante tira e põe de impermeáveis, manguitos e camisolas térmicas. Uma dança constante em que o par é uma mochila que pesa uns 4 kgs. Umas vezes, há poeira no ar. Outras, lama nos joelhos. A ilha é simplesmente colossal e furiosa. Citando o vencedor, “a corrida não é contra os outros. É contra a ilha”.
Na partida, lembro-me de questionar para onde ia o percurso, esperando que não fosse pela montanha gigantesca, com estradas que até de carro dariam medo subir. Como vim a perceber em várias ocasiões, o MIUT nunca facilita. A prova começou e… foi precisamente por aquela subida que fomos.
Lembro-me do engarrafamento na primeira descida, em single track, só me conseguindo soltar junto da Ribeira da Janela, onde fomos brindados com uma multidão entusiasta como nunca vi num trail. Um pequeno exercício motivacional antes da primeira agressão da prova: o km vertical até ao Fanal, onde nos esperava o primeiro abastecimento e o mais apertado de todos os cortes horários da prova. Outra das memórias é a companhia da Goreti Silva ao longo de toda esta subida. Perdi-a de vista no abastecimento, mas a nossa história nesta prova não ficaria por aqui.
A seguir é preciso falar da besta negra. Cerca de 10 km sempre a subir, dos 300 m de altitude até quase aos 1600, com inclinação brutal em alguns pontos. Eis as credenciais da subida a Estanquinhos, o segundo km vertical do dia, apesar de ter mais do que 1 km de D+. Foi uma subida que me correu muito bem, sem pausas e sempre a ultrapassar atletas, com todo o treino de força do Crossfit a dar cartas. Se não fiz melhor, certamente não foi por causa das subidas.
Não há muito mais para contar até à Encumeada, abastecimento onde encontro a Sandra e o João. Constato que o cenário está negro para os laranjas. O João não consegue segurar a comida e rebenta a bolsa de água. O Rui, Paulo e Gonçalo estão juntos e em prova, mas cerca de 7 kms atrás, no início de uma daquelas “subidinhas” de 500 D+, com apenas 2 horas para o corte horário. Recordo-me de provar a bolonhesa e odiar. Não mais lhe toquei ficando-me pelas canjas, laranjas, bananas e frutos secos daí para a frente, juntamente com o todo-o-poderoso Maurten e os milagrosos sales minerares da BioFrutal.
A pior fase da prova, aquela que deitou quase tudo a perder veio a seguir. Numa prova onde se sobe brutalmente - na Encumeada já levava cerca de 3500 D+ em 47 kms - desce-se infernalmente. E era por aí mesmo que andavam os meus joelhos. Pelo inferno. Com o joelho esquerdo a acusar dificuldades em qualquer momento que não fosse a subir e o direito a arder do esforço, os 14kms entre a Encumeada e o Curral, debaixo das mais altas temperaturas da prova, foram penosos, contrariando o perfil da prova, que até sugere alguma tranquilidade neste troço. O que é que já vos disse sobre o MIUT? É sempre pior do que parece. No final destes 14 kms, está uma descida técnica de quase 4 kms aos ziguezagues até ao Curral, que me valeram uma entorse no pé esquerdo e que quase hipotecou a minha prova. Chego destruído ao Curral e pronto para ficar ali. Só me dou ao trabalho de trocar de roupa e comer porque a Sandra estava à minha espera para continuar.
Escapo por pouco ao Curral, mas a mesma sorte não teriam o João, o Rui, o Paulo e o Gonçalo. O João não apresenta melhoras e eu próprio recomendo a sua desistência de forma a evitar uma mais do que provável desidratação severa. Os 3 mosqueteiros chegariam depois do corte e já não passariam. Sem dúvida, a maior tristeza que levo deste MIUT.
Nestas provas, não podemos tomar decisões com base em sensações momentâneas, de tão rapidamente que elas mudam. Considerando o estado em que estava na chegada ao Curral, seria impensável que, depois de trocar de roupa, de passar creme nos pés e de pulverizar as pernas com Reflex, eu arrancaria a sentir-me tão bem. Não estava perfeito, mas dava para continuar perfeitamente. Só tinha que apanhar a Sandra e seguir com ela.
E assim chegamos novamente ao tronco da subida para o Pico Ruivo. Foi ali, sentado no tronco com os meus pensamentos, que eu acabei o MIUT. Treinei, preparei-me, subi cerca de 7.200 m de D+, percorri mais de 115 kms, suportei o cansaço da segunda noite, quase sempre sozinho, subi e desci escadas de todos os tipos e feitios e temi pela vida à beira de precipícios, mas foi com a mente que apliquei um KO técnico ao MIUT. Uma vez lá em cima, mesmo sabendo que ainda faltava muito, era uma questão de atacar abastecimento a abastecimento. O mais difícil já estaria feito.
Entre o Pico Ruico e o Pico do Arieiro, estavam os trilhos dos postais. E que lindos postais eles fazem. Um maravilhoso sobe e desce de estreitos passeios de pedra, túneis, precipícios e escadas, quase sempre com vista para o manto de núvens abaixo de nós.
A partir do Pico do Areeiro a prova fica consideravelmente mais fácil. Quando vi um estradão, suavemente a descer, questionei se não estaria a ter uma daquelas alucinações de segunda noite. Mas o MIUT ainda teria alguns desafios para mim. Apesar de nunca ter sentido sono de verdade, o cansaço atacou na última “subidinha” de quase 500 m D+ para o Poiso. Havia ainda uma descida escorregadia e técnica para o Larano e havia a temida Vereda com o mesmo nome, aquela que se corre com um pé no abismo. É antes de chegar ao fim desta vereda, que alcanço a Goreti. Depois de a ter apanhado de saída nos abastecimentos da Portela e do Larano, estava atrás dela novamente e de mais dois colegas, o Manuel Correia e o Rui Gama. Decidi que não terminaria a prova sozinho e mantive-me com eles até ao fim.
Mas a última verdadeira tortura ainda estava para vir. Na levada final a partir do Caniçal, a prova segue no cimo do monte até se avistar Machico. Segue e segue sem parar. Ansiosos por começar a descida, a prova continua a percorrer o monte sem dar sinais de começar a abordagem final à meta. Nesta infinita levada, passamos por estreitos corredores de cimento, com um precipício sem fim à vista, sem qualquer tipo de proteção. Para intensificar a experiência, começa a soprar o vento. Pela primeira vez na prova, a 2 ou 3 kms da meta, sinto medo.
29 horas e 31 minutos depois, passo a meta do MIUT. Celebrar? Só queria ir para casa, tomar banho e dormir. Foi o que pedi ao Paulo e ao Gonçalo, que gentilmente me esperavam.
De banho tomado, deitado na cama, abro uma carta que a minha filha me havia escrito, com alguns desenhos. Ela pediu para eu a abrir quando chegasse à Madeira, mas só a abri no fim da prova.
“Pai, tu vais fazer 115 km na Madeira, e eu sei que vais conseguir.
Beijinhos, Beatriz.
Desejo-te boa sorte!
Estou orgulhosa de ti, pai.”
Mais palavras para quê?
Vejam este vídeo e sintam-se todos finishers!
(pouco recomendável a pessoas sensíveis a alturas...)
Fabuloso Pedro, à tua enorme capacidade como atleta, alias uma extraordinária capacidade como contador de histórias.
ResponderEliminarNo vídeo não é possível perceber as enormes dificuldades que contaste, até não parece muito difícil, a passagem pelo "Paraíso", conforme a letra da música.
Parabéns pela conquista e pelo belíssimo relato. O final, com o desenho da tua filha é soberbo.
Runabraço
Estivemos sentados no mesmo galho. Nesse momento tinha a certeza que seríamos barrados no Pico Ruivo, se continuássemos na mesma velocidade: a minha. Por isso te pedi para seguires. Tinha a certeza que terminarias, mas terias que ir sozinho. Em cada prova bruta de trail chego sempre à mesma conclusão: é uma analogia de vida; não podes contornar a dificuldade, tens que enfrentá-la. E subi-la. E descê-la. E cais. Magoas-te. Levantas-te. E continuas, por ti. E continuas pelas pessoas que amas. Como na vida. Isto é Ultra Endurance Trail. E, mais, foi o teu MIUT. Que terminaste, brilhantemente! E quase sempre sozinho, naqueles sítios que me provocavam pesadelos, a dormir e acordada. Iniciaste uma crónica de aventuras e terminaste com uma história de amor, com final feliz. Com a Beatriz e com a Carla . Ainda tiveste a sorte de ter a companhia de uma campeã tão especial como a “Goreti Bora Bora Silva” 😀 Ultra Amizades e Ultra Companheirismo foram as cerejas que nos permitiram gozar mais uma aventura RUN 4 FUN. Neeeeeeext! E que seja outra vez bruta, dura, com percurso desconhecido e com desfecho indeciso.
ResponderEliminarFizeste uma observação no post do Rui sobre o MIUT que me deixou muito curiosa em relação ao teu relato. O que escreveste foi "É esta história, a de uns corredorzecos da cauda do pelotão que se atiraram à prova mais difícil de Portugal para, contra as probabilidades, levarem um deles até ao fim, que poderás contar ao teu puto." Isto foi o aperitivo para o que aqui nos relatas. De modo muito interessante, algo que já antecipo nos teus textos, descreves-nos a forma como a mente interfere com o nosso desempenho, a forma como se ultrapassam medos, inseguranças, fragilidades e se transformam em histórias de superação, desafio, felicidade. É isso que eu procuro no trail. É com as vossas aventuras que eu alimento a minha motivação. És a prova de que um bom treino em box/ginásio também resulta na obtenção de bons resultados em montanha. Somos seres únicos e o que resulta para ti, pode não resultar para mim, mas as tuas dicas podem ser importantes para que outros ultrapassem também os seus obstáculos. Tu foste todos os Run 4 Fun - os que estavam em prova e os outros, nós, os que estávamos no continente a viver as vossas emoções - e o MIUT foi o teu gigante Adamastor. Venceste-o. Muitos parabéns, tu mereces. ��
ResponderEliminarEstás a ficar maduro, a caminhar para os quarenta, aí vamos ver-te a atingir ainda mais sucessos. Que sejas muito feliz! Parabéns!
Deixaste-nos curiosos depois do relato dos Azores Triangle Adventure.
ResponderEliminarSe o outro relato carregaste a vontade, garra, divertimento e deslumbramento pelas paisagens, neste levas-nos para uma prova de dor, superação, amizade, determinação e a força que o amor pode transformar em energia.
Portanto a comparação entre provas é pouca.
Mas o que posso dizer é que tu precisas destas aventuras. Costumas dizer "...que não é melhor nem pior..." eu digo que estas aventuras te tornam melhor pessoa. Melhor amigo, mais humilde, mais atento, mais forte, e não tenho dúvidas que num melhor pai também.
Não estou a dizer que fazer provas brutas "é melhor ou pior" para todas as pessoas. Mas tu tens uma bagagem valores positivos e bons. Esses valores que te reconheço permitem que afirme que depois destas aventuras te tornes numa pessoa melhor.
E por isso, todos os que te rodeiam, incluindo eu, mas principalmente a tua família fica fortalecida com isso.
Portanto foste assertivo nas duas frentes... em conseguires que a tua família te permitisse fazeres esta aventura e depois a prova bruta.
O relato está ao nível, mas para mim, desta vez o video superou a escrita. Funtástico Ribeirix!!
Fica escrito... tiro-te o chapéu pela superação desta prova bruta MIUT e obrigado pelos momentos que partilhamos nos dias todos.
ah.. e pela dica da aguardente "Fire". que coisa bruta.
Até a próxima aventura ma man.
Caramba Pedro és o maior, que grandíssima aventura.
ResponderEliminarVais ter muitas histórias para contar aos filhos da Beatriz.
O teu relato é magnífico e deu para perceber que suavizaste os "segmentos mais duros". És talhado para desafios como este e consegues supera-los sem alarido e com a elegância de um "passeio no parque". Quando eu crescer gostava de ser como tu.
Ao ler o texto repeti várias vezes: "Bolas, isto não é para mim".
Mas depois vi o video ...
Simplesmente ,............... BRUTAL !
ResponderEliminarMuitos parabéns, pelo texto, pelo vídeo e, pela grande capacidade mental e física.
MIKE
Happyrun
Óptimo relato. Impressionante força de vontade. Muitos parabéns.
ResponderEliminarFantastico Post Pedro !!
ResponderEliminarMelhor ainda que o dos Açores. QUASE FIQUEI TENTADO A IR
Sou teu fã incondicional nas Ilhas, que aventura, que enorme e inesquecivel jornada.
Para além da qualidade de Ultra Atleta e enorme performance nas provas mais dificeis, a sentida homenagem à Familia e aos Amigos.
Fui ao MIUT contigo.
Obrigado pela Viagem e partilha.
Grande Abraço !
RESPECT my friend!
Nunca é tarde para ler relatos do MIUT.. obrigado, Pedro! Parabéns pela tua épica prova, lembrou-me muito o meu primeiro MIUT. Um abraço e espero encontrar-te por lá em 2020!
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