Um inglês, um francês e um português


... estão numa prova de trail na Serra da Estrela. Chegados a um enorme calhau à beira de um precipício na descida para o Covão D'Amerdade, notam que o enorme calhau começa a ceder e não há tempo para fugir. Grita o francês:

Se ficarrrrrmos aqui em cima, vamos morrrrrrerrrrrr todos. Temos que larrrrrgarrrrrr peso!!!!

O inglês chega-se à frente corajosamente e diz:

EM NOME DA RAINHA!

E atira-se.
No entanto, o calhau continua a ceder. O francês grita:

E agorrrra??!! Ainda está muito peso em cima do calhau. Vamos cairrrrr os dois!

O português responde de peito cheio:

Calma, eu trato disto… PELO BENFICA!

E empurra o francês. 





Existe alguma verdade nesta pequena anedota adaptada, mas é caso para dizer que o Estrelaçor é uma prova que fica na memória por aquilo que podia ter sido, mas não foi. 

A primeira história desta prova é a mini cimeira luso-anglo-francófona que acidentalmente se gerou à mesa de jantar antes da partida. Parecia mesmo o início de uma piada clássica. Ali estava eu, a jantar na companhia de um inglês residente no Porto há 2 anos e que pouco português falava, e de um francês que, de férias em Portugal, decidiu que a melhor forma de conhecer o país seria a fazer dois trails de 100 kms numa semana. Abrantes e Estrelaçor. Certo. O inglês não sabia o que era Abrantes, mas conseguiu situar-se geograficamente quando lhe falei de Tomar. “Do you know what they say? Who goes to Abrantes, let’s Tomar behind!”. Pensei, mas resisti a contar-lhe esta ligação popular entre as duas terras. Confirmando os meus 40 anos de tratamento de turista na minha própria pátria, o inglês ainda me disse “Are your parents Portuguese? You don’t look Portuguese!”. “Dude, my father grew on tired horse soups! Two generations ago, everyone on my family had moustache, including women! Cocks fuck me if we’re not as Portuguese as it gets!”. Felizmente, também estes pensamentos não passaram disso mesmo.   




Entre entrega de gps, controlo zero e partida para a prova ainda nos fomos vendo, mas não mais isso voltaria a acontecer. Charlie Shepherd, o inglês, terminaria perto da meia-noite do dia seguinte. David Scotte (acho que era ele), terminaria quase às 2 da manhã. Eram muito simpáticos, à semelhança de outros estrangeiros que conheci no Triangle (também franceses) e que ainda hoje comentam o meu Strava, demonstrando que os trilhos continuam a unir o mundo e os povos. A mais bonita das conclusões, no entanto, é que apesar do PIB que trazem no camelback, levaram uma coça.  




Vamos à prova, então. Como é que se lida com o pensamento de ter 100 kms para fazer e de passar cerca de 24 horas seguidas no meio dos montes, com os kms a acumularem-se a conta-gotas, numa interminável sessão de sofrimento auto-imposto? Costumo recorrer a dois processos mentais. O primeiro é uma afirmação poderosa. Anotem: 

Tudo tem um fim. 

O que são 100 kms à escala do planeta, da galáxia, do universo? Se a vida é curta, o que dizer de uma prova que dura 24 horinhas? O que parecia não ter fim, agora que olho para trás, acreditem, parece que passou num instante. 





O outro processo mental é a visualização. Aqui não chega imaginar a travessia da meta. É preciso criar uma história mais interessante. É preciso imaginar que alguém importante, sem estar combinado, vai lá estar para acompanhar os últimos metros. É preciso imaginar que vamos fazer um tempo incrível, horas antes do previsto. Acima de tudo, é preciso sentir e é neste sentimento que a mente se perde. Esquece o que ainda está para fazer, os kms a percorrer, as rampas a subir, as dores que já se fazem sentir. Uma espécie de nitro à fast & furious que nos dispara por ali adiante, pelo menos até chegarmos a sítios como o Covão D’Amerdade. Quando a energia começa a faltar, é preciso voltar para esta narrativa imaginária ou começar a imaginar outra. Desde cedo comecei a imaginar o seguinte:

Ainda é de dia e eu começo um directo no grupo dos Atletas R4F. Digo boa tarde (porque ainda é de dia, não se esqueçam!), ofegante. Mostro-me tremendamente cansado e chateado e digo que apesar de todas as expectativas e de toda a vontade, não aguento mais. Tenho que atirar a toalha ao chão e desistir. Pedindo desculpas e agradecendo o apoio, encosto-me a algo. Desvio a câmara um pouco e vê-se uma placa. “Penhas da Saúde”.  

O que eu me ri com este cenário e como me deu energia para continuar. Considerando que acendi o frontal quase a chegar ao último abastecimento, diria que não fiquei muito longe, mas aquela descida para o Covão D’Amerdade, mesmo sem quedas nos calhaus gigantes e falecimentos, foi má demais para mim. 




Houve mais algumas coisas que deviam ter sido e não foram nesta prova. 

Iluminadas só até onde o frontal alcançava, as descidas de estradão a pique no Açor pareciam dirigir-se para o grande vazio, mas não. Apenas continuavam e continuavam e continuavam e não havia maneira de aquilo acabar e quando a inclinação já era de doidos, inclinava mais ainda, destruindo pernas e pés à sua passagem. De noite, por vezes parece mesmo que é o chão que mexe por baixo dos nossos pés, como se fosse uma gigantesca passadeira feita de gravilha e terra. Corremos e corremos, mas nunca saímos do mesmo sítio. 




Os abastecimentos da prova eram excelentes, sempre com comida consistente, cerveja da preta e muita simpatia. Mas deviam ter sido mais. 15 e 18 kms entre abastecimentos não ajuda muito à gestão dos recursos, mas dizem que assim é que é semi-auto-suficiência. Se tivessem avisado, teria feito um semi-auto-pagamento e só dava o dinheiro de abastecimento em abastecimento. Talvez fossem mais. 



Julgo que não é exigir muito que uma prova esteja bem marcada. Esta também devia estar, mas não estava. Com poucas marcações e ainda menos refletores para a noite, perdi a conta ao número de vezes em segui o caminho errado ou que tive que parar para perceber por onde era para ir. Fui avisado e avisei outros atletas várias vezes. Uma possível estratégia para abrandar concorrentes directos: “espera aí que já estamos mal… (apanhamos o concorrente) afinal estamos bem!”

O Estrelaçor deveria ter sido uma prova de Trail Running. Apesar do zero running na brutal subida do Alvoco à Torre, a prova faz jus ao nome durante cerca de 90/95 kms. Depois há aqueles 10 entre a Torre e o Covão D’Amerdade. Uma descida de calhaus em 4 apoios, lenta, escorregadia e perigosa que destruiu a minha visualização. Não vou alongar-me muito sobre este traçado horrível. Andei por lá cerca de 3h30, pensei muito sobre o assunto e a conclusão não me sai em português bonito. Só quero esquecê-lo e nunca mais lá voltar. 




Agora que o Covão D’Amerdade já tinha destruído os meus pés, chegavam cerca de 10 kms de ligeira descida até Manteigas no incrível vale glaciar do Zêzere, do qual bebi água da nascente sem perder tudo o que tinha nos intestinos, para variar. O ritmo foi tão alto, que até fui ultrapassado por atletas dos 180. Vi pastores mais vigorosos a espreguiçarem-se do que eu a correr. O que vale é que depois de Manteigas vinham 20 kms de subida leve até aos 2 kms finais a descer para a meta. Assim me tinha dito a Sandra Simões, mas deveria ter percebido que algo estava errado, só de olhar para o dorsal. Na verdade, esperavam-me 1200 D+ em cerca de 18 kms, durante os quais continuei a ser ultrapassado por atletas dos 180. 





Para terminar em beleza, o meu incrível Hyperlight impermeável até 20K e respirável até 25, a ser usado pela segunda vez, decidiu fazer amor com uma silva e abriu-se todo nos últimos kms. Zero K na resistência à silvas, portanto. Para já, o distribuidor diz que a culpa é minha. Eu digo que a culpa é da organização, que podia ter feito a prova toda por estrada e assim evitado a natureza instalada.




Em conclusão, o Estrelaçor 100 é uma prova dura, mas acessível e generosa. As descidas noturnas são violentas e intermináveis. A subida para a Torre está ao nível das piores no MIUT. A descida para o Covão D’Amerdade podia fazer parte dos Abutres. Pode fazer e fez muito frio no Açor e pode fazer muito calor, mas não fez, nas subidas da Estrela. São mais de 5.500 D+, o que coloca esta prova ao nível de um UTAX e quase duma Freita. Mas tem 30 horas de tempo limite e isso é muito tempo. Eu terminei com 22h06, apenas 6 minutos para lá do tempo de corte… em Manteigas, a 20 kms da meta! Quem tiver vontade e (pouca) cabeça para fazer 100 kms, o que não é coisa pouca, tem nesta prova uma boa oportunidade para o conseguir. Têm tudo para odiá-la como eu a odiei, até chegarem à meta.  




Errata - para os mais distraídos, o Covão D’Amerdade é na realidade o Covão D’Ametade. Diz que antes de começarmos a descer para este purgatório montanhoso, dá para ver o Cumcaralhinho lá ao longe. 
























Comentários

  1. O que vale é que não te falta o bom humor....depois de concluída a prova com base nos dois esquemas mentais que anunciaste. parabéns Pedro Ribeiro por mais uma enorme conquista. Runabraço

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  2. Funtástico Ribeirix!

    O teu segundo processo mental era, foi, é, muito poderoso. Antes de o dizeres ainda pensei que seria a tua analise/conclusão em que dizes que "não é bom, nem é mau..." mas não era.

    O inesperado ou esperado mas duvidoso em bom, é um processo de dois bicos Se por um lado te ajuda a motivar durante a prova, por outro lado pode frustrar-te a expectativa. E por outro lado se for frustrada tornas-te mais forte.

    Já adivinhavas e bem que tu nos tentaste por várias vezes aliciar para irmos contigo companheiro.
    Não te largamos da mão, mas podíamos ter feito melhor.

    Se calhar ao teres terminado Tingle o MIUT de forma brilhante, tornaste-te num super atleta para nós. E agora achamos que vais triunfar de qualquer forma.

    A própria apresentação da Marina, na provas do fim de semana, como o nosso "Lobo Solitário" diz alguma coisa.

    Agora fico a pensar no UTMB. Caneco!! Não quero que fiques com o síndrome dessa coisa.

    O que ri quando li que o teu incrível Hyperlight fez amor com uma silva.

    Grande relato.

    És o maior Ribeiro

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  3. BRILHANTE Pedro Ribeirolas!!! BRILHANTE, como sempre. Imaginativo e com humor. Li avidamente e com umas boas gargalhadas. Ultra-Endurance-Pedro, és um orgulho. Porém, nunca te disse que, após Manteigas, era uma subida leve de 20 km. Disse que era sempre a subir até à meta. E alertei-te bem para a descida para o Covão ������: “ Descida para Manteigas (...). A partir daí é sempre a subir até à meta”.
    Acrescento: és um tipo corajoso. Na inscrição e na prova. Sabias que corrias o risco de fazer a prova sozinho.
    Tenho pena que não te tenhamos acompanhado e que não tenhamos estado na meta.
    É muito duro não ter companhia nesses momentos cruciais.
    Eu e o Rui cruzámos essa meta às 03:27 e não havia uma única pessoa à nossa espera. Mas festejámos mutuamente.
    Acredita, no entanto, que estivemos contigo.
    Percorremos os caminhos juntos.
    Celebrámos a tua chegada à meta.
    E vibrámos com o teu triunfo.
    Parabéns

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  4. Quando me apercebi que tinhas publicado o relato o primeiro impulso foi o de querer lê-lo logo de seguida. Mas não, a custo consegui conter-me. Reservei a leitura para um momento em que pudesse acompanhar-te devagar por todas as palavras.

    Valeu a pena esperar. A tua descrição é sublime (como sempre). Sublime mas perigosa porque fiquei curioso em ver de perto as dificuldades de que falas. Será que no próximo ano, não nos poderás fazer uma visita guiada a esses trilhos?

    As fotos estão um espectáculo.

    Obrigado pela partilha.
    Teodoro

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