Andorra Ultra Trail VallNord - Ronda dels Cims 2019 - 1º dia.







Descrição:


Giant route around the whole Principality of Andorra, including a visit to its highest point, Comapedrosa at an altitude of 2.942 meters, touching on the border. In the light of the full moon on the longest days.
  • 170 k ( 106 mi.) 13.500 meters (8 mi.) of elevation gain and 13.500 meters (8 mi.) of elevation loss.
  • Departure from Ordino town centre on Friday on the morning and finish in Ordino town centre
  • 16 peaks or passes upon 2.400 meters
  • Average altitude: 2.085 meters
  • The most spectacular feature: panoramic views, alternate zones of minerals, high mountain meadows, forests, glacial lakes...
  • The most technical section: some completely safe rocky ridge sections
  • Sticks allowed
  • 13 refreshment points

Time limits:
  • Friday at 5 pm (10-hours race): Coma d'Arcalís (31K)
  • Saturday at 9 am (26-hours race): Margineda (73K)
  • Sunday at 2 am (43-hours race): Refugi de l'Illa (116K)
  • Sunday at 8 am (49-hours race): Pas de la Casa (130K)
  • Sunday at 12 am (53-hours race): Vall d'Incles (142K)
  • Sunday at 7.30 pm (60,5-hours race): Sorteny (158K)







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Que pode uma criatura senão,
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer, amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
E amar o inóspito, o áspero,
Um vaso sem flor, um chão de ferro,
E o peito inerte, e a rua vista em sonho,
E uma ave de rapina.
Este o nosso destino: Amor sem conta,
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Doação ilimitada a uma completa ingratidão,
E na concha vazia do amor à procura medrosa,
Paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
E na secura nossa, amar a água implícita,
E o beijo tácito, e a sede infinita.

- Carlos Drummond de Andrade 







Esta prova é dedicada à minha Mãe e ao meu Pai, que me geraram, cuidaram de mim e muito contribuiram para que eu hoje fosse a pessoa que sou.







De todas as provas de 100 milhas que já fiz, esta foi a que geri de forma mais inteligente de todas.

Estou longe da forma que tinha em 2015 quando fiz o UTMB, e também já não tenho 47 anos, como tinha na altura, mas estou mais esperto. Assim planeei uma enorme caminhada, e mantive-me agarrado ao plano. Não é fácil caminhar. Nunca mais se chega aos abastecimentos, são muitas horas no terreno, é muito difícil psicologicamente.  Mas há que saber progredir no terreno. Sobretudo há-que saber onde descansar, o que comer e beber, que eletrólitos e outros suplementos tomar, como gerir a dor, etc.



No entanto, o que me carregou do início até ao fim, foi o Amor.

O amor dos meus filhos, o amor da minha família, o amor dos meus inúmeros amigos, os que viajaram comigo fisicamente e os que o fizeram em espírito.

Foi também o meu amor. O meu amor pela montanha. O meu amor pela corrida. O meu amor pela natureza. O meu imenso amor pela liberdade.



Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. A Caridade é sofredora é benigna; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo Sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor.

1 Coríntios 13




A preparação e o prólogo encontram-se nos seguintes links:

Andorra Ultra Trail VallNord - Ronda dels Cims 2019 - S02E11

Andorra Ultra Trail VallNord - Ronda dels Cims 2019 - Prólogo










Às 5 horas da madrugada de dia 19 de Julho de 2019 tocou o meu despertador. Tal como o Bill Murray, em Groundhog day, parece que entrei num ciclo contínuo, em que revivo a mesma experiência dia após dia, enquanto não me conseguir transcender.

 Levanto-me e equipo-me.


O equipamento necessário está descrito neste post:

Andorra Ultra Trail VallNord - Ronda dels Cims 2019 - S02E11



Tomo um pequeno-almoço frugal mas enérgico.

A Carla levanta-se para me acompanhar até partida. O António irá lá ter.

Saímos para o fresco da rua. Cerca de quilómetro e meio de um passeio calmo até à Praça Central de Ordino.

É bom estar acompanhado.

Sinto-me muito calmo. Não sou homem de grandes nervosismos antes destas aventuras. O que acontecer no campo, no campo se resolverá.

Sou controlado na entrada para o curral da Ronda dels Cims. Verificam apenas se tenho a manta de sobrevivência.

Encontro o resto da comitiva Tuga. Têm bom ar. O Arede, o Flávio, o Miguel Soares, o Sommer, O Diogo, o Telmo, o David. Bravos guerreiros da falange do inútil.

Somos uma espécie de liga de cavaleiros extraordinários, neste caso globettroters cujo conceito de férias é pagar para ficar exposto horas a fio na Montanha em lugar de ficar calmamente a beber maragaritas num qualquer resort Mexicano.

O Rui e a Sandra vêm também acompanhar a partida. É bom sentir tanto carinho por tanta gente querida.

Há aqueles que viajaram comigo: António, Carla, Elsa, Gonçalo, Jorge, Rui, Sandra; e os muitos outros que estão também presentes.









Às 7 horas dispara o tiro da partida, e saímos do redil frementes de emoção.









Corremos alguns quilómetros antes de sairmos da estrada para o primeiro single-track da prova. Somos 408 participantes, ainda estamos todos muito próximos, o caminho afunila logo temos que abrandar. "Ótimo", penso eu com os meus botões. Tenho uma desculpa para descansar. Agora encontramo-nos no meio das árvores num trilho suave e macio.






A prova ainda mal começou e já me sinto ofegante. O que vale é que já tenho muita experiência e sei que ainda estou só a aquecer. Mais para a frente sentir-me-ei melhor.

Junto-me ao Diogo e ao Flávio. O Diogo a descer é um verdadeiro míssil, e eu caio no erro de tentar acompanhar. É o pior erro que se pode fazer: tentar fazer a prova de outra pessoa. O que devemos fazer é mantermo-nos dentro dos nossos parâmetros, correr ao ritmo que nos for confortável, abrandar quando necessário e acelerar quando possível.

Resultado: logo ao km 6 de prova dou uma queda feia numa descida. Não me apercebo logo, mas dei uma bela pancada com o joelho esquerdo.






A dor e o desconforto começam a instalar-se. Era só o que me faltava! Tento desviar a minha atenção do joelho.

É impossível evitar as contrariedades em prova. Algo irá suceder mais cedo ou mais tarde. O segredo está em manter o otimismo e acreditar que será possível prosseguir. Prosseguir sempre.


Naturalmente sou uma pessoa calma e com sangue-frio, e os 18 anos que já tenho de trabalho numa empresa de telecomunicações em funções técnicas operacionais dão-me um traquejo adicional de experiência em funcionar debaixo de fogo. Nas minhas funções tenho que manter os sistemas a funcionar 24 horas por dia, e como dou suporte a grandes clientes empresariais que incluem hospitais, corporações de bombeiros, ministérios, serviços camarários, grandes empresas, estou muito habituado a ter que resolver problemas bicudos em tempo real, sob enorme pressão.

Na verdade, funciono melhor debaixo de pressão. Mas de uma pressão aguda, não aquela pressão surda e contínua do dia-a-dia que nos corrói a sáude se deixarmos. Estou no meu melhor quando tenho que tirar un coelho da cartola para salvar uma situação.


Como diz o Yuval Harari no "Sapiens", acho que a vida de um caçador-recoletor era mais interessante do que a nossa. Era mais perigosa e tinha mais dor, doença, trauma, etc, mas a isso estamos nós adaptados por milénios de evolução. Aquilo a que não estamos adaptados é à rotina de um trabalho de escritório. É uma fraca aproximação, eu sei, mas por mais dor que tenha numa corrida de 170 km, sinto-me muitíssimo mais feliz, e essa felicidade perdura durante algum tempo.


Mas discorro. Voltemos à história:

Mesmo assim progrido bem, empurrado pela mole humana que sobe a montanha. Ao fim de algum tempo chego ao Coll d'Arenes (col significa passagem). Deixámos as árvores para trás e a paisagem é despida e pedregosa.








Inflectimos à esquerda, dirigimo-nos para a Collada de Ferreroles, passamos para o lado de lá da montanha e começamos a descer em direção ao primeiro abastecimento de Sorteny, passando pelo Llac de l'Estanyó.








Ao fim de 4 horas lá chego a Sorteny. Completei os primeiros 21 km e subi os primeiros 1.550 mD+. Ainda estou bem, apesar das dores no joelho. A média de velocidade foi de 5,3 km/h o que não é nada mau e não se irá repetir até ao fim.







O abastecimento é fraquinho, não tem sopa. Ingiro o que posso e saio para a próxima etapa. Estou neste momento na posição 258 entre 408 participantes.










O próximo troço de 10 km até Coma Arcális leva-me 3h30, logo a uma velocidade significativamente mais reduzida. O calor começa a pesar. Chego bem dentro da barreira horária das 10 horas de prova, 20 minutos mais rápido do que em 2017. À chegada sou recebido pelo João Rosa. É uma alegria encontrar malta amiga. Reforça-me o anímo. À entrada do abastecimento encontro o Armando Teixeira. O anímo aumenta ainda mais. Ele está alí a dar apoio ao David Quelhas, que está a fazer uma prova magnífica.






Este abastecimento é uma enorme confusão de gente a comer, encher flasks e bexiga de hidratação, usar a casa de banho. Mas a comida é excelente. Ingiro duas sopas de seguida, reforçadas com massa, lentilhas, atum e milho. É uma espécie de massa consistente que passará a ser a minha receita em todos os abastecimentos subsequentes. Como também melão, que está ótimo, melancia, laranja, amendoas, presunto.

É fundamental alimentarmo-nos bem. O corpo é uma fornalha que necessita queimar nutrientes para produzir energia, e se para de assimilar esses nutrientes, então eventualmente acabará por não conseguir mais progredir no terreno.

Entre abastecimentos aproveito para repor sais, vitaminas, magnésio e ferro. Nos abastecimentos socorro-me em abundância de tudo o que existir disponível. Levo ainda alguns geis para as estiradas mais longas entre abastecimentos.



A saída de Coma Arcalísé suave. Tomo o meu primeiro anti-inflamatório pois estou farto da dor no joelho. Não é lá muito seguro tomar anti-inflamatórios em prova, pois podem comprometer a função renal, mas desde que me vá hidratando abundantemente e vá controlando a cor da urina, julgo que não há problema. E o que não falta é água nestas montanhas.


As subidas agora passam a ser diferentes. Vamos encontrar pedra, e mais pedra e mais pedra e mais pedra... e inclinações verdadeiramente brutais, como não conseguimos encontrar em lado algum em Portugal continental.

















Mas continuo com força nas pernas. Vou subindo a bom ritmo. Ao km 41 passamos em Clot del Cavall. Em 3h30 faço os 13 km até Pla Estany. Velocidade: 3,7 km/h.






Pla Estany é o abastecimento antes da gargântua subida até ao pico mais alto de Andorra, e ponto mais alto da prova, o Pic Comapedrosa. Consiste numa cabana de pedra no sopé da subida, num cenário verdadeiramente mágico. De três lados apenas se vê paredes de rocha, imponentes e ameaçadoras.










Chego à Pla de l'Estany às 18:00. Irei conseguir chegar ao pico ainda de dia. Alimento-me e saio de novo.

Agora vou ter que subir 900 mD+ em 2,5 km.




A subida é dura, muito dura. Mas ainda estou fresco. Consigo fazê-la em 01h44. A vista lá em cima é deslumbrante. Vê-se os picos todos ao redor.









O meu vídeo, com homem da gaita de foles e tudo!







 Agora vou ter que descer até ao refúgio de Comapedrosa. É uma descida muito inclinada. Há que fazê-la com calma e cuidado.











Faço os 3 km até ao refúgio de Comapedrosa numa hora. São 20h44 quando entro no refúgio. Estou agora em 197º lugar. 50K estão feitos. Ainda é de dia. Estou a correr há quase 14 horas. Não me demoro muito no abastecimento. Saio para a rua ainda de mangas curtas, sem necessidade de vestir mais roupa.




Chego à Portela de Sanfons quando finalmente anoitece. Visto o impermeável e coloco o frontal.






Agora corro por cima de uma crista, a Collada de Sanfons.














Chego a Coll de la Botella às 23h26. Os últimos 10 km levaram-me 2h42 a fazer, a uma velocidade média de 3,8 km/h. Estou neste momento na posição 189 e completei 60 km de prova em 16h26m. Sensívelmente a um terço do total, mas com mais de um terço do desnível positivo. A minha velocidade média até aqui foi de 3,7 km/h. Se mantivesse a mesma velocidade faria os restantes 110 km em 30h, o que daria cerca de 46h26m no total. Claro que a expetativa é começar a perder força, e o ritmo começar a baixar. Mas estou confiante. No entanto, existe sempre aquele Adamastor em Coma Bella, que não consegui vencer em 2017. É a minha barreira psicológica.




Agora irei entrar pelo noite dentro e pelos seus terrores...






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