Azores Triangle Trail Adventure - A viagem



Muitos de vocês já estiveram nos Açores, talvez todos, e alguns já correram por lá. Cada um teve a sua experiência e fez a sua viagem. Esta é a minha e tem “banda sonora”. Se as palavras são o bilhete para a viagem, a música será o caminho que vos levará até lá. Sentem-se confortavelmente, tranquilos, de preferência com auscultadores nos ouvidos e sejam bem vindos.



Não consigo explicar muito bem o que os Açores me fazem sentir. São ilhas de contradições. Por um lado, sinto humildade perante a memória colossal de uma força primitiva e esmagadora. Por outro, há uma energia quase palpável, próxima e confortável. Por todo o lado há maravilha e melancolia. Comunhão e isolamento. O topo do Pico, um verdadeiro farol do grupo central, visível de qualquer canto, omnipresente, é também o mais inacessível dos lugares de todas estas ilhas. No passado, pisá-lo escapou-me como as areias negras da ilha escapam entre os dedos. Desta vez, seria diferente. Agora, iria a correr. Lá em cima era quase certo que iria chorar. Faria um inédito directo nas redes sociais para partilhar o meu mais importante feito nos trilhos. Sem saber o que me esperava em São Jorge e no Faial, o Pico era o grande feito anunciado.
A prova? O maior desafio do ano. 3 etapas. 1 por dia. 3 ilhas. 102 kms. Quase 6.000 D+. Seria preferível fazer tal distância de uma só vez ou dividida por 3 dias? Depois da ilusão de uma noite de recuperação, quereria o corpo voltar a correr no dia seguinte? Para estar à altura, só houve 3 dias em Setembro sem treino. Ora crossfit, ora corrida, ora ambos. Sentia-me bem, sem dores, preparado. Tinha tudo. O isotónico certo. A resposta para as cãibras. O equipamento adequado. E uma vontade inquebrável.

Vamos. Dia 1 - Pico - From the vinyards to the mountain Já tinha o relato todo na cabeça: Como esta etapa, não há outra em Portugal. Mais de 2000 D+ para cerca de 200 D-. Um gráfico altimétrico só com uma direção. A subir. Com início em Madalena, os primeiros kms revelaram-se rápidos. A 5:10/km passei pelo lindíssimos muros basálticos do verdelho do pico, património da humanidade da UNESCO e rapidamente cheguei aos maroiços, pirâmides de pedra, também ela basáltica, que o povo afirma terem sido feitas para limpar o terreno das pedras, mas que cientistas afirmam serem anteriores à chegada dos portugueses ao arquipélago.


Com os primeiros sinais de inclinação, o ritmo baixou e passei a intercalar fases de caminhada com fases de corrida. Precisava de me poupar para os restantes 2 dias. Depois do primeiro abastecimento, ao qual cheguei em pouco mais de 1h30, entrei na longa reta até à casa da montanha, uma subida de 12,5 km que me levou dos 200 m de altitude até perto dos 1400. 


Com alguns trilhos técnicos mais lentos, escorregadios e com o olhar atento de muitas vacas, cheguei à casa da montanha com as pernas desgastadas e a acusar o desgaste. Nada que uma canja não fosse capaz de resolver antes de me atirar ao ponto mais alto, não apenas no sentido geográfico, desta aventura pelos Açores. A subida ao piquinho. Cerca de 4 kms de distância para um desnível de 1000 metros. 4 kms que os atletas da frente costumam demorar uma hora a concluir e que eu previa demorar duas. Pelo menos. Depois deste desafio monstruoso, como estariam as pernas amanhã e depois? Não interessa. O Pico seria meu. De dentes cerrados, olhos no céu e bastões cravados na montanha de lava, parti. Comecei decidido, o treino de força dava cartas e ninguém seguia no meu ritmo. Imparável até lá acima. Acima das núvens. Acima de tudo. Acima de mim. Há muito que já tinha chegado lá em cima na minha mente. Mas agora estava mesmo lá. Num último esforço, dou o último passo. O peito ergue-se. As lágrimas descem. Conto ao mundo. Absorvo a incrível vista acima do manto de núvens. Descanso um pouco e começo a descer enquanto incentivo companheiros que ainda estão no martírio. Vale muito a pena. Assim foi a subida ao Pico, mas só aconteceu na minha mente.


Na realidade, não houve subida ao piquinho. Começou a escapar-me no dia antes da prova, com os primeiros rumores de que as previsões de tempo apontavam para uma montanha encerrada por motivos de segurança. Rumores que se confirmaram na manhã da prova. A montanha mais alta de Portugal, o km vertical mais desafiante de sempre, o relato que já estava escrito na minha mente há meses decidiu que naquele dia não ia acontecer.  Debaixo de um pesado manto de núvens, bafejado por fortes ventos, o topo do Pico estava de porta fechada. Perigoso, diziam eles. O que eu pensei, não transcrevo aqui. A aventura terminava e ainda nem tinha começado.

A etapa começou com esta terrível sombra, maior do que a projetada pelas nuvens que pairavam no cimo da ilha. A etapa estava ferida, tal como o meu orgulho. Se acabasse o Triangle, seria sem fazer o mais difícil. Uma espécie de Triangle Light para escuteiros. A etapa aconteceu e decorreu tal como descrevi acima.


A excepção é que terminou na casa da montanha. Por essa altura, já os ventos se faziam sentir em força, a visibilidade era nula e o óculos ficavam permanentemente embaciados. Também eu me senti forte, o suficiente para deitar o resto daquele monte abaixo, mas tal não iria acontecer. Apesar da beleza da ilha, a etapa tinha ficado aquém. O primeiro dia foi de desilusão. Para compensar, paguei a mim mesmo uma massagem, eu que nem sou dessas coisas. Para terminar a primeira etapa em horror absoluto, chegava a notícia de que o último barco do dia tinha sido cancelado devido ao estado do mar. O risco de não haver transporte para São Jorge no dia seguinte, bem como a própria etapa, era real. Dia 2 - São Jorge - Fajãs Trail Reunido com as restantes tropas na manhã seguinte, confirmo que havia barco. E etapa. Talvez isso me tenha motivado para agarrar o conteúdo do meu estômago com o dobro da convicção naquela viagem entre Madalena e Velas. Pelo menos um terço dos viajantes foi mal sucedido nesta missão. Ondas enormes de mar e tsunamis de vómito tomaram a viagem de assalto. Um autêntico festival de regurgitação que condicionou a prova de muitos. Eu só conseguia pensar no frio que estava a sentir.


Depois de 1h20 de uma viagem turbulenta de barco, nada melhor que uma viagem de autocarro até São Tomé. Esperava-nos um novo pequeno-almoço, sobretudo para repor o que muitos tinham deixado para trás. Arrancaríamos no alcatrão, no topo do muro montanhoso que percorre toda a ilha de São Jorge. O vento soprava e estava frio. Apesar de reduzida e facilitada, a prova do dia anterior teria o seu impacto. Mas qual seria? Nem pensei muito no que tinha pela frente. E lá começámos, em plano alcatrão. Percorremos 500 metros, uma curva para esquerda e de repente... (pausa na música anterior, sff)


… os olhos deixaram de ver trilho. Estaria a voar? Sim, em direção ao mar e às rochas cerca de 500 metros mais abaixo. Sem saber, tinha acabado de entrar numa montanha russa que só terminaria na meta. Tinha perdido demasiado tempo a pensar no que tinha corrido mal no Pico. Estava na hora de partir a loiça e de parar de pensar.

Desço. Pulo pedras. Deito-me nas curvas e nas contra-curvas. Ultrapasso atletas. Doem-me os quadrícipes. Está um calor de estufa. Para onde foi o frio!!!!????? Tiro o impermeável. Sou ultrapassado. Volto a descer. Volto a ultrapassar. Desço. Mais pedras. Esqueço as dores. Desço.
De relance, observo o mar sem fim a bater numa montanha que o corta como uma lâmina. Mais pedras. Mais descidas. Chego quase ao nível do mar. Fajã de São João. Corro. O trilho é lindo. Corro. Abrando. Foto na cascata.


Uns kms disto e começo a subir. Ligo os bastões de luz. Bastão. Bastão. Bastão. Bastão. Pareço sei lá o quê. Peter Skywalker, porque não? Subo. Subo. Foto na cascata. Num instante, parece agora, chego quase aos 500 de altitude. Respiro.


Desço novamente. A serpente cravada na montanha deu lugar a um escorrega daqueles fechados. Das mais belas descidas que alguma vez fiz. Nem sempre a rasgar por ali abaixo, mas sempre por ali abaixo. Desço. Desligo os bastões de luz mas nem dá para os arrumar. Já estava na praia. Fajã dos Vimes. Lentamente entre as pedras da praia, sigo. Parede. Olho para cima. 700 m verticais em menos de 5 kms. Por vezes, quase 50% de desnível. A força é forte em mim. Subo. Bastão. Subo. Bastão. Subo. Foto na cascata. Algures, o vento parece o metro de Lisboa. Assusta. Está frio outra vez. Chego ao ponto mais alto de São Jorge. Abastecimento. Siga. Desço para a Fajã de Santo Cristo. Está tudo bem. Sobe e desce ligeiro até à Fajã do Belo. Só de nome. De repente, cãibra. Paro. Sou ultrapassado. Merda. Recupero. Arranco. Fajã dos Cubres mesmo ali à frente.


Sigo. Meta. Respiro. Canja. Massagem. Banho na cave de uma tasca. Autocarro para a Calheta. Jantar. Autocarro para Velas. Última subida do dia para o apartamento. Arrumo a tralha. Preparo o Faial. As pernas doem. Durmo sobre o assunto. Dia 3 - Faial - Vulcanoes Marathon
Passada a tempestade, parecia que o melhor dia tinha chegado. Não para as minhas pernas, certamente. O mar estava calmo e a travessia não libertou mais pequenos-almoços. Estava na hora de atravessar o Faial, com início no território mais jovem de Portugal, os Capelinhos. Parecia que estava em Marte ou na Lua.


(pausa na música anterior, sff)



Saio da minha nave e com o primeiro passo naquela paisagem lunar, assolada pela fúria do vulcão, as pernas ressentem-se da força da gravidade. Ao terceiro dia, o corpo pesava nitidamente mais. Já conhecia outros tripulantes desta viagem e outros seguiam comigo, mas sentia-me sozinho no espaço profundo. Mas também maravilhado com este planeta novo. Primeiro Marte. Árido. Montanhoso. Inabitado. Sempre a subir por ali acima entre a vegetação rala. Nas subidas, consigo esquecer as dores. Passo companheiros. Nas descidas, a gravidade faz das suas. As pernas doem e os companheiros passam. 


Em tendência de subida, entramos em Pandora. As copas das árvores bloqueiam o sol e a água jorra de todo o lado. A vegetação é primitiva e dominadora. Tudo esmaga o pequeno ser humano por estes lados. Mas este nunca desiste. Nas encostas do gigante adormecido, uma enorme levada de água gravada com sulcos, pontes e túneis transporta-nos durante quase 8 kms com uma enorme sensação de leveza.


Parece que vou a voar com os meus ténis espaciais a abraçarem-se à lama como não se vissem há décadas. Na prática, o ritmo é quase 8 min/km, ilusão do ar inebriante de Pandora, certamente, mas parece muito mais rápido. De tal forma que recuso abrandar para tomar a minha cápsula de sais minerais e a minha porção de nutrientes carbo-proteicos. 


Da subida que se seguiu não há grande memória, porque depois entrei numa dimensão espaço temporal diferente. Estava no início dos tempos no topo de um vulcão. Estava adormecido e deixava-se ver na sua plenitude. Foram 5 kms parado no tempo mas em movimento na sua crista, ora deslumbrado com a dimensão da sua cratera, ora com a imensidão das suas encostas feitas de lava.


Depois disto, flutuei até à meta. Estava de volta ao planeta terra, são, salvo e sem cãibras. Tinha sobrevivido à aterragem. Estava de volta a 2018 e só pensava numa coisa. Massagem.



97 kms percorridos em 3 dias consecutivos, com uma ultra oficiosa no último. Dúvidas à parte, estava escrito que acabaria esta prova. Nunca imaginei outro desfecho sequer. Fico com a sensação que fazer esta distância em 3 dias é mais leve do que fazê-la de seguida. Uma noite de sono é uma noite de sono. São horas de preciosa recuperação, antecedidas de refeições a sério. Uma boa hidratação, vulgo, tudo menos álcool, e umas boas massagens para aliviar a rigidez muscular, tornam esta distância ao alcance de qualquer ultra-maratonista preparado. E não tenho como saber o impacto da subida ao Pico no resto da prova. Teria sido, de facto, o maior desafio dos 3 dias. Psicologicamente, pode custar um pouco arrancar no segundo e terceiro dia. Mas aí entra em cena o factor Açores. Nesta prova em que pouco ou nada interessa os tempos e outras medidas de performance, descobrir o que cada ilha tem reservado para nós é um verdadeiro encanto. Pouco ou nada se aproxima da beleza dos Açores. Resta ir à Madeira para saber se o parque de diversões local se compara a este.

Nesta prova, como na vida, serviu na perfeição um dos meus pensamentos preferidos, que não é bom, nem é mau: tudo acaba. Enquanto é bom, é para aproveitar. Quando é mau, não é preciso desesperar.


Senhoras e senhores, espero que tenham apreciado esta viagem e desejo que voltem em breve.

  




Comentários

  1. Skywalker...está aí tudo. Tudo o que nos apaixona, motiva, determina, arrasta, ressuscita, intimida, dá prazer e humildade. Tudo o que nos faz sentir vivos. Tudo o que nos leva a fazer estas aventuras no meio da natureza. E que Natureza, essa, a dos Açores. Por norma, só a vivência desses momentos nos permite interiorizá-los. Mas o teu fantástico relato colocou-me lá. Também ajuda o facto de, no Faial, já conhecer a prova e o deslumbramento que nos provoca. É, de facto, um espaço muito especial. Parabéns por TUDO! E muito obrigada por estes momentos. Lá iremos ao MIUT para tirar conclusões...

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  2. A tua descrição é soberba. Tem a magia de nos transportar pelas palavras ao longo das sensações da(s) prova(s). Foi também muito feliz a selecção da banda sonora, 3 provas, 3 registos significativamente diferentes. Também por isso dá para sentir as diferenças. És o maior Pedro, adorei.

    Vou colocar o triângulo na minha "bucket list".

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  3. Com banda sonora isto foi de arrasar.
    Dos maroiços (que tive que googlar) à desilusão do piquinho. Da viagem do Gulliver à rapidez com que desci à Fajã...

    Grande relato para uma aventura poderosa e sem a companhia dos compinchas habituais.

    Só não percebi porque estavas de olho nas vacas ;)

    Estava a ficar com dúvidas se iria me inscrever no "outro" parque de diversões, mas acabaste de tratar me dar a motivação que precisava.

    Excelente companheiro!

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  4. Fantástico post, Pedro Ribeiro !!!

    Obrigado pela rica partilha, viajei mesmo.
    Não tenho duvidas que estará na minha lista de 2019.

    Parabéns pela performance, experiencia e partilha.

    Abraço

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  5. Notável relato. Escrita criativa e fluída, fotos bonitas e como sempre, longe da realidade, que é bem mais "arrasadora", banda sonora muito bem escolhida. Um dos melhores posts deste blogue, com quase 20 anos. Gostei muito da "viagem". Obrigado Pedro pela partilha.

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  6. O blogue só tem quase 10 anos. É o que dá fazer comentários no "smartphone"😂. Faltava ainda, Pedro, dar-te os parabéns pela tua conquista. E o Pico não vai sair de lá 😊. Grande abraço.

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