III Ehunmilak 2012 - Preâmbulo



Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
-    Álvaro de Campos




Perfil Altimétrico

Percurso


O Ehunmilak (vide o meu post anterior) é uma prova pedestre de montanha, com 168 km de comprimento e 22000 metros de desnível acumulado (11 mil a subir + 11 mil a descer), que passa pelos picos montanhosos mais significativos da província de Guipúzcoa, na comunidade autónoma do País Basco. A sua personalidade própria deve-se principalmente aos seguintes factores: a enorme beleza da envolvente paisagística; a feroz inclinação ascendente e descendente dos seus trilhos, que incluem troços de vários quilómetros ultrapassando os 25%; a dureza do seu piso, capaz de desfazer a sola do pé mais rijo; a inconstância caprichosa  da sua meteorologia, que potencia o grau de dificuldade ao gerar autênticos rios de lama e perigosas pedras escorregadias.

Ou seja, um autêntico Adamastor, esperando para nos devorar caso tenhamos a ousadia de tentar a sua travessia.

«Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;»
- Os Lusíadas, Canto V.



Psicose:
«O termo psicose é definido como a incapacidade de distinguir entre a experiência subjectiva e a realidade externa, ou seja, existe uma perda de contacto com a realidade.»

O enorme, gargântuo, demolidor desafio que foi para mim o Ehunmilak pode ser definido como a anti-psicose.

Processa-se em 3 estágios em que se vão removendo as camadas externas da psique até restar apenas o eu nu e primevo, imerso numa realidade pre-uterina, uno com o Universo ("no princípio era o Verbo").

Primeiro a Montanha destroi o corpo, fibra por fibra, até não sobrar mais nada para além da mente para nos levar adiante. Seguidamente destroi a própria mente, através do cansaço e da privação do sono, que impedem a concentração e nos dificultam os passos. Por fim sobra apenas a vontade pura para nos levar até ao fim.



Cinco dias volvidos sobre o término da prova, ainda passo horas meditando sobre o que sucedeu na Montanha. Tenho recordações muito mais vivas daquilo que se passou no segundo dia do que ocorreu no primeiro (a falta de sono prejudica a formação de memórias). Ainda tenho dores e abrasões em vários pontos do corpo e ainda tenho dificuldade em sentir o dedo grande do pé esquerdo. Ainda sinto a astenia e o sono profundo que me conquistaram nos dias posteriores à prova.

Contudo, sinto também a calma reconfortante proporcionada por aquele contacto prolongado com a vontade no seu estado mais puro.


Nota:
Da mesma forma que eu ainda me encontro no processo de reconstrução pós-Ehunmilak, esta vai ser uma crónica em (re)construção. Reservo-me, humildemente, o direito de corrigir alguma construção gramatical mal engendrada ou limar alguma expressão menos conseguida, ou até mesmo introduzir algum parágrafo que me faça sentido, à medida que for publicando.

Comentários

  1. Luis
    Tu cada vez que relatas uma experiência, surpreendes-nos pela tua capacidade de escrita e descrição das dificuldades dos percursos e do que nos vai na alma e no corpo ao longo dessa jornada. Esta pequena introdução já nos apimentou a curiosidade para os relatos que aí vêm.
    Espero que recuperes dessas mazelas o mais rapidamente possível. Cá te aguardamos para te rever no Trail Nocturno de Óbidos. Bjs Luisa

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  2. Murakami quando correu uma ultra de 100 (não me lembro se milhas se quilómetros) também entrou em reflexão profunda sobre a vida. Tu (e quase todos nós) leste o livro e lembrar-te-ás dessa parte. Provas desta natureza devem acabar por ser mais mentais que físicas, se é que isto é possível. Parabéns pelo teu feito e espero que daqui a duas ou três semanas possas dizer que a experiência foi positiva. Daquilo que me lembro Murakami nunca mais quis participar numa distância destas. Boas férias. Bom descanso.

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  3. O preâmbulo promete.

    Aguardamos, ansiosamente, os próximos capítulos

    Runabraços

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  4. Obrigado pela fantástica partilha Luis.

    Runabraço

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  5. Ao ver o perfil do percurso compreendi a violência que foi percorrê-lo. Ao ler a tua descrição (introdutória) confirmei como a prova é demolidora, arrazadora! Só muito poucos, com uma força de vontade férrea, comandados pelo espírito quando o físico já está de rastos, é que conseguem superar tal prova.
    Que orgulho pertencer ao teu grupo R4F!
    Até 4 de agosdto, em Óbidos

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  6. Viva Luís,

    A tua partilha é verdadeiramente enriquecedora e, apesar da dureza da prova, é sempre um desafio irmos ao encontro de nós próprios no sentido mais profundo.
    Obrigado e parabéns por mais esta grance demonstração!
    Grande abraço

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  7. Caro Luis,
    Aguardo, com impaciência, o relato que sucede a este preambulo para lá de metafísico. Deve ter sido uma experiência única. Parabéns desde já por teres conseguido terminar esta prova. Extraordinario.
    Abraço.
    Gonçalo

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  8. Luís, sobre a tua prestação na prova qualquer comentário será pouco para o feito realizado.
    Quanto à escrita, ela está a subir para patamares muito elevados e não me parece que seja apenas motivado pelos ares da montanha.
    Obrigado pela partilha e aguardarei ansiosamente pelos restantes detalhes.
    Bom descanso.

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  9. Luís,

    Quero esse relato em 1ª mão no nosso próximo treino em Sintra!

    Abraço

    Zé Carlos Santos

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  10. Grande LUÍS,

    estou ansioso à espera da tua magnífica descrição da prova e muitos parabéns pela tua loucura. De fato e gravata, das 9 às 5 já nós estamos fartos. Queremos é coisas diferentes. Agradeço também as tuas encorajadoras e simpáticas palavras no domingo passado, na Ultra-Maratona Melides Tróia.

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  11. Este comentário foi removido pelo autor.

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